Eu atrasei deliberadamente a publicação deste texto, mas nunca me passou pela pela cabeça deixar de escrevê-lo. Eu cheguei mesmo a prometer um texto sobre minha tatuagem no post da
ressurreição do blog. Entretanto, eu deixei para escrever sobre isso agora que todos já a viram, já comentaram, já aprovaram entusiasdamente ou já desaprovaram categoricamente. Em suma, publico agora porque não vai mais causar bafafá.
Por que uma tatuagem?
Não sou nenhum fã especial da arte corporal. Não mais do que qualquer outra arte. E nem menos também. Sempre admirei e desde 2005 sempre quis ter uma, mas nunca encarei isso como um modo de vida, a despeito de (e com respeito a) todos os que vêem dessa forma. Entretanto, acho que uma tatuagem deve transcender a questão estética. É patético marcar o corpo permanentemente com algo que você apenas julga bonito. A nossa noção de belo evolui com o tempo e o que outrora parecia belo não é mais. Por isso queria algo que tivesse significado e um significado forte, não um simples blá blá pra justificar.
Eu estava decidido a voltar da França com uma tatuagem, mas não compartilhei isso com ninguém. Eu finalmente alcançara a maturidade que eu julgava necessária para fazer uma (e a coragem também). Agora só faltava o desenho. Inicialmente eu queria algo que representasse meu intercâmbio e todo o valor que ele pode ter na vida de um jovem de vinte e poucos anos. Ou algo que representasse o local onde eu morei durante esse tempo.
A primeira idéia
Sou fã da estética celta, dos nós, das cruzes e sobretudos dos trisqueles e triquetas. Coincidentemente eu fui enviado para uma cidade com uma herança céltica ainda forte. Nantes, como já disse várias vezes antes, está inserida culturalmente, embora não mais geograficamente, na região da Bretanha, o berço de uma das seis nações célticas. Portanto, pareceu-me bem natural tatuar um símbolo celta. Pensei no trisquele, pois acho o seu significado muito rico e também o acho um símbolo muito bonito. Pensei em tatuá-lo no centro das costas.
O trisquele
Apesar de tudo isso, não acho que o significado do símbolo fosse forte o suficiente para eu gravá-lo no meu corpo. Eu senti que eu deveria continuar procurando outro motivo para desenhar.
Os faróis
Quando eu era pequeno, pequeno o suficiente para eu não ter nem idéia de quando isso aconteceu, eu vim uma foto que mexeu um bocado comigo. Ela estava à venda numa loja de decoração com temática naútica que existia num shopping bem conhecido aqui de Fortaleza. Aqui está ela:
Se ponham no lugar de um moleque de seis anos ou menos e tentem imaginar com que olhos eu vi isso. Uma onda gigantesca contornando a base de um farol e prestes a engolir o guardião que desavisadamente posta-se do lado oposto. Se você me permite um curto de momento de divagação agora (um mais longo virá, prepare-se) as informações que eu tirei dessa foto devem ter sido:
- Os homens são frágeis e não são nada se comparados com as forças da natureza.
- Faróis são algo resistente pra caramba!
E eu devo ter esquecido isso logo em seguida, pois mais nada na minha infância me dá pistas a respeito da minha relação com faróis. Muitos anos passaram e eu ingressei na Escola Naval. Lembro-me bem que tivemos no fim do ano aulas sobre sinais e balizas e que um dos assuntos foram os faróis. Descobri então que cada farol é único, que dois faróis não compartilham o mesmo padrão de luzes, o mesmo sinal de rádio, a mesma geometria da torre e nem a mesma pintura. Cada um tem sua "impressão digital". Um dos nossos livros era a lista de faróis da costa brasileira, que eu lia com atenção durante as aulas de Navegação. Em algumas vezes em que fui à bibilioteca, além dos livros de aviação e os livros de fotografia de grandes veleiros, eu me peguei olhando fotos de faróis.
Uma das lembranças mais nítidas que eu tenho desse ano foi o regresso do meu embarque na fragata F45 União. Tínhamos ido ao porto de Vitória no Espírito Santo e estávamos então nos preparando para entrar na Baía de Guanabara. Era um fim de tarde de outubro (isso não tem nada a ver com música do CPM 22) e o sol havia se posto há pouco tempo. Passávamos então ao lado do farol da Ilha Rasa, uma torre quadrada, branca e de arquitetura ibérica. E essa imagem nunca saiu da minha cabeça. Foi aí que eu descobri essa paixão pelos faróis.
Já como civil eu continuei cultivando essa paixão. Olhava fotos na internet e numa dessas ocasiões achei a bendita foto da minha infância. Ela foi tirada por um fotógrafo francês chamado Jean Guichard. Ele é bretão e as fotos mais conhecidas dele são - advinhem - de faróis bretões. É claro que tudo isso eu ignorava completamente e só fui descobrir na época em que eu me candidatava para o Duplo Diploma e já via Nantes como um objetivo, e não uma possibilidade. E foi nessa época que eu descobri a herança cultural bretã da cidade.
O significado, finalmente
Por mais estranho que pareça os faróis nunca me vieram à cabeça quando eu pensava na tatuagem. Eu já possuía um livro de faróis da costa Atlântica da Europa na estante, uma foto do
Ar-men pendurada há mais de um ano sobre a minha cama e fotos de faróis que me serviam de papel de parede no computador. Ironicamente a relação entre os faróis e a tatuagem me fugia continuamente. Foi de repente que eu me lembrei de tudo isso e percebi que além de ser algo de que eu gostava profundamente, era também algo rico de significado.
Eu aprecio bastante a estética da tatuagem japonesa, embora não seja lá muito atraído pelos significados da maior parte delas. Eu procurei um tatuador de Nantes cujo trabalho em tatuagens orientais me agradasse e lhe pedi um "farol em estilo japonês". Discutimos a tatuagem e quais elementos colocaríamos junto com o farol. E o resultado - após duas sessões de quatro horas realizadas em março e abril, um bocado de dor e muitos euros a menos - foi o seguinte:
Tem um pouco de photoshop para aumentar o contraste e melhorar a compreensão do desenho
Eu convido vocês a lerem novamente o texto sobre a
ressurreição do blog. Existe uma parte dele - entitulada
Três coisas a lembrar - em que eu falo sobre minha visão pessoal do mundo. Os elementos da tatuagem têm uma relação direta com cada um desses pontos. Elas também são dispostas de uma maneira lógica: o elemento mais visível sob a manga da camiseta corresponde ao ponto mais genérico, enquanto que o mais escondido (e mais pessoal) representa a idéia mais profunda.
- A mensagem na garrafa - Ter uma vida plena de histórias para contar: Nossas histórias são as mensagens que colocamos nas garrafas e atiramos ao mar.
- O barco - A vida é feita de encontros: Mas os encontros só acontecem se nos lançarmos ao mundo, representado pelo mar, e acharmos outras terras e pessoas (barcos).
- O farol - Alegria e felicidade não são a mesma coisa: A estabilidade do farol vai ao encontro das idéias de que a felicidade corresponde a um estado de equilíbrio, e não alegria.
Esse é o significado do panorama geral, dos elementos escolhidos e da maneira em que eles se relacionam. Entretanto, eu gostaria de divagar um pouquinho mais sobre o papel do farol nessa história toda.
Faróis são construções robustas, que aguentam provações fortes. Eles permanecem de pé apesar da fúria dos elementos ao redor e ainda assim são capazes de lançar uma luz sobre os problemas e sugerir um caminho a seguir. Essa é a imagem que muita gente faz de mim sabe-se lá por qual razão. Ela talvez tenha sido verdadeira (ou quase) por um bom tempo, mas durante os últimos anos eu fui bem menos "farol" do que eu gostaria de ter sido.
Essa é uma qualidade que eu gostaria de resgatar. Mais do que isso, é uma qualidade que eu gostaria de perenizar e não perder mais. Se as pessoas que me conhecem esperam segurança, confiança, tranquilidade e solidez de mim e eu gosto de oferecer isso, por que não gravar um lembrete para que sempre que eu me afaste desse caminho eu tenha como retornar?
Já ouvi várias pessoas dizendo que não é aconselhável tatuar-se em um lugar que seja visível no espelho para não enjoar do desenho. Porém, eu decidi mudar o local da tatuagem das costas para o braço. Eu sei que um dia eu me cansarei do desenho, que ele desbotará e tudo o mais, mas eu quero todo dia me lembrar de todo esse significado e manter essa atitude que me é tão cara.
Além disso, o braço direito é o braço que eu estendo para apertar a mão de uma pessoa e é também o membro com que eu toco o ombro de uma pessoa quando dou os "dois beijinhos". Ao fazer isso eu me obrigo a lembrar que junto com o braço estou oferecendo à pessoa um símbolo de segurança e tranquilidade e me obrigo a agir assim. No trabalho ou na vida pessoal, com o desenho coberto pela manga da camisa ou exposto ao sol, como profissional ou como amigo ou como amante, cada vez que eu estendo o meu braço eu ofereço junto segurança e tranquilidade. Todos os dias então, a cada aperto de mão ou beijo, eu tenho um sem fim de oportunidades de me lembrar do que eu sou, do que espero deste mundo e do que eu espero que eu seja e lembro-me de agir conforme a esse pensamento.