Pentecostes en Vic-Fezensac

Acredito que podemos dizer que no ano passado eu não era um verdadeiro fanfarrão. Ainda pouco habituado aos (maus) costumes da Fanfrale eu sentia prazer em tocar, mas não em ficar com os outros fanfarrões. Fosse pelos hábitos nojentos deles ou pela grosseria e violência gratuitas, eu evitava passar muito tempo com eles e inclusive deixei de viajar para tocar com a Fanfarra em alguns contratos e eventos. O principal evento que eu perdi ano passado foi o feriado de Pentecostes no vilarejo de Vic-Fezensac.

O tempo foi passando e eu fui deixando de lado um pouco dessa seriedade exagerada que eu tenho. As coisas nojentas eram ao mesmo tempo uma maneira de afugentar os menos motivados e selecionar apenas os membros dedicados. Também era uma forma de manter uma aura de insanidade ao grupo, algo que mesmo tempo assusta e diverte. Os insultos nada mais são do que um ritual de passagem, àqueles que abstraem e levam a coisa na brincadeira é garantida a simpatia. Demorei um ano pra compreender que eu não precisava fazer tudo como eles faziam, que eu podia ser eu mesmo e que eu poderia aceitar as tradições do grupo e ser aceito ao mesmo tempo. Foi então que eu me decidi a aproveitar ao máximo as oportunidades de tocar e viajar com a Fanfrale no segundo ano.


A Fanfrale depois do fim das aulas

Como vocês sabem eu estou em Paris. Na École ficaram apenas os alunos do primeiro ano enquanto os do segundo e terceiro ano estão em estágio ou intercâmbio. Uma semana antes do feriado de Pentecostes os fanfarrões EI1 alugaram uma caminhonete e vieram a Paris, foi a oportunidade de reunir os fanfarrões estagiando na cidade e tocar na cidade. Tocamos na frente da Ópera e nos divertimos bastante, apesar da avareza dos parisienses nos dar uma gratificação minguada.

Todos estavam muito agitados com a proximidade da Feria (festividade típica do norte da Espanha e sul da França) de Vic. Ou, como nós chamávamos simplesmente, Vic. Vic é um dos eventos-mor pra Fanfrale, rivalizando com o fim de semana do antigos, que chega a reunir mais de 50 fanfarrões de 10 gerações diferentes. No Pentecostes os fanfarrões de todas as gerações e de todas as partes da França, e até da Europa, se reúnem nesse vilarejo de quase 4000 habitantes, na região do Gers, de onde veio o célebre mosqueteiro D'Artagnan.


Fanfarrões, uni-vos!

O que há de tão especial em Vic para que 120000 pessoas, quantidade 30 vezes superior à população normal, ocupem suas ruas durante quatro dias? A Feria de Vic é um das mais célebres ferias da França, com suas tradicionais touradas e festividades. Mas Vic é também o palco da competição nacional de fanfarras, que se se digladiam nas ruas da cidade diante de um público extasiado.

A cada ano dezenas de fanfarras, estudantis ou não, vêm de toda a França para competir. Neste ano contamos inclusive com a participação de uma fanfarra belga. A competição sempre tem um tema e os grupos devem adaptar as fantasias e, se possível, as músicas ao tema. Neste ano o tema foi Gers, o nome da região. O tema pode ser usado livremente. Alguns exemplos:
  • A Bande à Joe, fanfarra da École Centrale de Paris, se fantasiou de mosqueteiros. Era uma fantasia previsível, mas felizmente eles foram os únicos a usarem.
  • A fanfarra ganhadora, da qual não me lembro nem nome nem e origem, se fantasiou com perucas black power e roupas dos anos 70. A razão? Eles incarnaram os GERSons Five, uma alusão aos Jackson Five. O repertório deles seguiu os hits dance e funk da década de 70.
  • Nós aproveitamos a proximidade sonora de Gers com GRS (Ginástica Rítmica Desportiva) em francês e nos fantasiamos de ginastas. Blusinhas de alça, curtas e apertas, e collants de cores berrantes deram o ar da graça juntamente com fitas coloridas.
O concurso leva em conta a qualidade musical do grupo, a criatividade da fantasia e a empatia com o público. Embora toquemos durante todos os dias, da hora em que acordamos à hora em que dormimos (ou entramos em coma alcóolico, o que vier primeiro), a avaliação é feita durante uma tarde, em que as fanfarra se revezam para se apresentar nos bares da cidade. Desta etapa são selecionados alguns grupos finalistas que tocarão durante a noite nos palcos montados na praça e receberão os prêmios no dia seguinte.

Todas a fanfarras são alojadas no ginásio da cidade, a poucos passos do centro da cidade. A prefeitura fornece colchões e se ocupa igualmente de alimentar esse batalhão todo durante dois dias.

Parti de Paris com mais três colegas de Nantes na tarde da sexta 10 de junho. Oito horas de estrada até Vic.


A magia do sul


Se existe uma festa no Brasil que se compare à febrilidade de Vic eu não tenho nenhuma dúvida de afirmar que é o Carnaval. Tudo está lá: o mesmo clima, a mesma bagunça, a mesma quantidade de álcool... O que muda é que não há axé nem samba animando a massa, mas as fanfarras. Quase todos os participantes da festa se vestem à moda do sul, do País Basco: roupa branca e lenço vermelho amarrado no pescoço.

Acredito que seja muito mais divertido participar de uma feria assim como fanfarrão. Por onde você passa sempre tem alguém que vem brincar com você e dizer "fais pam-pam-pam dans ta trompette", que significa "faz pam-pam-pam no teu trompete". Por sinal isso é algo muito divertido: qualquer instrumento de sopro pro povo é trompete e qualquer instrumento de percussão é bumbo. Invariavelmente nós tocamos um pequeno tema de tourada e somos recompensados com bebida, às vezes um litro inteiro de cerveja. E se você recusa a bebida não é raro que os foliões a versem diretamente e à força pela sua garganta abaixo. Vestido como eu estava, com um collant super apertado e com uma tatuagem extremamente chamativa no braço e visível a quem quisesse, eu terminei sendo interpelado dessa maneira diversas vezes. Isso me obrigou a medir a quantidade diária de álcool consumida não mais em litros, mas em galões.

Impossível narrar todo o fim de semana. Minhas histórias e sobretudo as histórias dos outros fanfarrões da escola tornariam este texto ainda mais fastidioso. Me limitarei então às mais engraçadas ou mais marcantes.


A noite de sexta

Chegamos por volta de 00:30 e éramos os últimos da nossa fanfarra a chegar. Nossos colegas tocavam no centro da cidade há algumas horas. Nos fantasiamos e partimos pra lá. Tocávamos numa espécie de marquise de uma casa antiga. Tinha muita gente por lá. Como chegamos muito tarde não aconteceu muita coisa. Digno de nota foi o fato de uma menina chegar em mim, falar "tatuagem bonita" e escrever o nome e o telefone dela no meu braço com pincel permanente.

Quando voltávamos pro ginásio, por volta das 3h da manhã, eu passei através de uma nuvem de spray de pimenta lançado não muito tempo antes para controlar uma briga. Posso garantir que não é uma sensação agradável.


O sábado

Pela manhã acordei muito bem, visto que para mim a noite anterior fora bem curta. Dormir num ginásio de fanfarrões não é fácil, contudo. Cada um que chegava de madrugada inventava de tocar dentro do ginásio e das 3:00 às 10:00 da manhã eu posso garantir que sempre havia um grupo tocando no centro do prédio, embora os integrantes mudassem constantemente.

Primeira constatação da manhã: o número de telefone e o nome marcados na pele não eram exclusividade minha. Eles estavam mais ou menos espalhados pela pele e roupas de uns cinco fanfarrões.

Durante a tarde participamos do desfile e das apresentações nos bares. O percurso terminou na frente de uma banquinha que estava oferecendo cerveja grátis para todo mundo. Parada obrigatória para a Fanfrale, evidentemente.

As lembranças da noite são mais fluidas e difusas, pois à cerveja ingerida ao longo de todo o dia somou-se o vinho servido no refeitório. Algumas das coisas eu só soube através de colegas no dia seguinte e vou adiantando agora. Lembro-me que tocamos num bar, o Maison Bleue. Tocávamos sobre um palco e havia uma multidão por lá. Eu estava no centro do palco e na primeira fila e até onde eu me lembro tudo correu bem por lá, mas no dia seguitne eu ouvi os comentários dos meus colegas sobre uma confusão no bar. Como eu lembrava apenas do Maison Bleue eu perguntei em qual bar tinha sido a confusão e fiquei surpreso de saber que fora lá que aconteceu. Um cara tentou subir no palco e um dos fanfarrões; um sujeito tímido, franzino e nem um pouco afeito à violência; o impediu. Na segunda tentativa o nosso colega deu um chute no peito do sujeito. Os amigos do cara tentaram subir no palco e aí a confusão começou. Boa parte dos integrantes da nossa fanfarra são ex-jogadores de rugby da equipe da escola e eu lembro-vos que o rugby não é nem um pouco delicado. Ninguém saiu ferido.

Eu fiquei realmente surpreso de não me lembrar disso, mas súbito me lembrei que durante uma parte significativa da apresentação eu estava ocupado***. Dever ter sido engraçado pros expectadores verem um terço da fanfarra caída de bêbada fora do palco, um terço tocando, um terço caindo na porrada e eu no centro feliz da vida e aproveitando a apresentação.


O domingo

"P*** que pariu! Cadê meu saxofone? Tá aqui... Ufa!"

"P*** que pariu! Cadê meu celular? Merda. Perdi."

Assim começou meu domingo. Com dor na cabeça e um buraco negro mnemônico. Não conseguia achar meu celular, mas estava admirado de ter trazido o saxofone são e salvo. Tirei ele do estojo pra montar e partir pro café da manhã e mais impropérios me saltaram da boca:

"Droga! Tem um cigarro preso nas teclas"

"P*** que pariu!!!! Por que é que tem uma camisinha cobrindo o bico do meu saxofone???"

Parti depois de tomar as medidas higiênicas cabíveis, não sem antes procurar uma nota de cem euros no interior do instrumento, sabe-se lá...

Não fôramos selecionados pra fase final da competição, o que nos dispensava de qualquer obrigação no domingo. Dessa forma, nosso grupo custou um pouco a se concentrar e se organizar em algo digno de ser chamado de fanfarra. Tocamos pela tarde. Assistimos um pouco da apresentação das demais fanfarras e levamos o dia preguiçosamente.

O tempo não ajudou muito e uma chuva se abateu sobre a cidade. Corremos para o ginásio para guardar os instrumentos e na correria me perdi do pessoal. Fui para o centro sozinho e sem sax. Não bebia, pois seria eu quem dirigiria na primeira parte da manhã no dia seguinte. Saindo do ginásio encontrei um cara e três mulheres e fiz amizade com eles. Eles vinham basicamente todos de Toulouse e arredores e uma das mulheres se casaria dentro de um mês. Eles me levaram com eles até o bar onde estava o noivo e eu terminei ficando um bom tempo por lá, conversando e passando uma noite tranquila. Assim terminou meu domingo e meu batismo de fogo em Vic.



Ferias e mais ferias

Arrumei minhas coisas para ir embora e, surpresa, encontrei meu celular num bolso aleatório da mochila. Como eu disse antes, eu tinha que levar o carro de volta durante metade do caminho na segunda feira. Eu conduzi o carro e três cadáveres sob a chuva durante três horas e meia, algo em torno de 350 km, não sem antes passar por um controle de alcoolemia numa blitz na saída da cidade: zero. O cadáver dono do carro assumiu o resto do caminho quando ele estava devidamente ressuscitado.

Cheguei em casa e larguei as coisas. Estava pronto pra dormir. O telefone deu os dois bips característicos de mensagem. A maluca que escrevera o telefone em mim me respondeu a mensagem que eu enviara no sábado de manhã. Batemos papo por um tempo e através dela eu descobri que existem inúmeras ferias do tipo durante todo o verão, uma mais promissora que a outra e quase todo fim de semana.

Cheguei no trabalho e súbito me lembrei que um dos meus colegas mais jovens vinha de Toulouse. Perguntei a ele se ele conhecia Vic e pelo sorriso que ele deu eu antecipei a resposta: não só ele conhecia como acabara de voltar de lá. Nós discutimos e espontaneamente ele me convidou pra Feria de Bayonne no fim de julho.

Que venha a próxima feria.
Que venha o próximo fim de semana febril.
E salve Vic.