3coisas

O "Nantes tarde do que nunca" serviu a muitos propósitos.

Quanto ao objetivo inicial, que era ser um informativo prático àqueles que fariam ou desejavam fazer um intercâmbio na França, sinto que ele foi muito bem sucedido. Digo isso motivado pelos comentários que ouvi pessoalmente de todos aqueles que tive a oportunidade de encontrar na França e que, em maior ou maior grau, me deram a gratificante recompensa de saber que minha iniciativa havia sido útil.

O objetivo secundário era manter informados meus familiares e amigos e saciar suas dúvidas sobre minha vida de intercambista. Nesse ponto me considero igualmente bem sucedido, pois essas foram as publicações mais comentadas e que geraram maior fluxo de acessos no blog.

Mas o "Nantes tarde do que nunca" foi antes (ou Nantes) de tudo o embrião do meu pendor literário, que ao longo de dois anos vivendo uma experiência intensa e redigindo minhas impressões a respeito amadureceu e tomou forma e vida própria. Escrever tornou-se um hábito, um prazer e uma necessidade, três características que normalmente atribuímos (ou gostaríamos de atribuir) às nossas ocupações profissionais.

Os longos textos descrevendo minhas viagens e aventuras aqui evoluíram para narrativas curtas, de estilo cru e foco na subjetividade. Muitos dos textos que eu imaginava não se enquadravam no conceito do blog e isso me desmotivava a publicá-los aqui. Quantos textos eu abortei antes que pudessem ser escritos por causa disso...

Dessa forma eu decidi criar um blog pessoal, sem nenhum propósito prático como este aqui tem. Ele serve para dar vazão aos meus textos. Isso não é o fim do "Nantes tarde do que nunca". Ele continuará aqui como repositório de boas histórias e dicas práticas e, quem sabe, escreverei aqui sempre que algo relacionado ao intercâmbio me vier à cabeça. É recompensador saber que, mesmo três anos após ter sido criado, ele ainda é acessado 500 vezes por mês!

Aproveito o ensejo para divulgar o 3coisas, o meu novo blog e desejar uma ótima leitura aos que se aventurarem!


A burocracia de retorno

Uma vez eu escrevi sobre a burocracia de partida, todo o protocolo a ser seguido quando chegamos no nosso destino na França. Este é um texto prático e análogo ao primeiro, mas trata das burocracias de volta ao Brasil. Como todos já estão familiarizados com a burocracia brasileira - ou assim eu imagino - então trata-se muito mais de um pequeno lembrete do que de um guia de fato. Entretanto, vale a pena lembrar-se.


Justificação de ausência em eleição

Fundamental para todos o que querem fazer concurso público, pois uma ausência não justificada nas eleições possui caráter eliminatório nas inscrições de qualquer concurso. O procedimento é extremamente simples. A justificativa deve ser feita até 60 dias após as eleições, todavia para residentes no exterior esse prazo passa a contar a partir da data de regresso, então fiquem de olho vivo para não perderem o prazo.

Mesmo que você tenha perdido a data limite, ainda assim é possível regularizar a situação sem problemas pagando uma multa. O valor é bem baixo. Mais informações no site do TRE-SP.


Exercício de apresentação da reserva

Após o alistamento e a apresentação ao serviço militar, os reservistas são obrigados a realizar o exercício de apresentação da reserva durante cinco anos. Ele consiste em apresentar-se anualmente do dia 9 ao dia 16 de dezembro na sua Organização Militar (OM) para carimbar o certificado de reservista.

Isso também é extremamente importante para aqueles que pretendem prestar concursos públicos, já que a quitação das obrigações militares é pré-requisito para todos os homens que desejam realizar concursos. Segundo o site FAQ do Exército (questão 17), reservistas no exterior devem se apresentar na mesma data em uma Repartição Consular do país de residência. Eu não me apresentei em nenhum consulado e ainda não regularizei minha situação, pois ainda me faltam dois carimbos, mas acredito que ela possa ser regularizada mediante pagamento de multa.


Renovação de carteira de motorista

Esse é provavelmente o caso de muitos intercambistas. Ao completar 18 ou 19 anos, durante o primeiro ano de faculdade ou último ano de colégio/cursinho muitos fizeram os exames para a carteira de habilitação, cuja validade é de cinco anos. Esse período expira mais ou menos na data do nosso retorno. Minha carteira estava vencida há 10 dias quando cheguei.

O procedimento de renovação é bem simples e está descrito no site do DETRAN-CE. O procedimento para outros estados deve ser análogo, acredito eu. Os documentos necessários são:
  • Fotocópia do RG
  • Fotocópia do CPF
  • Fotocópia de um comprovante de residência datando de menos de 90 dias (lembrem-se desse prazo!)
  • Comprovante de pagamento da taxa. Esse valor para mim foi de R$102,08 e pode ser pago em qualquer agência do Banco do Brasil, Bradesco, Caixa Econômica Federal e Casas lotéricas.



Reabertura de conta bancária

Alguns devem ter fechado suas contas bancárias brasileiras durante os dois anos de intercâmbio para evitar o pagamento de taxas ou por qualquer outra razão. Eu mantive minha conta aberta, pois era por ela que eu recebia minha bolsa do Banco do Nordeste. Ainda que ela não tivesse essa serventia, eu a teria mantido aberta do mesmo jeito para ganhar mais tempo como cliente do banco e, portanto, mais benefícios. 

Para aqueles que fecharam suas contas, lembrem-se de abrir uma nova conta. Se por ventura vocês desejam abrir no mesmo banco que antes, procurem informa-se se é possível resgatar os privilégios que vocês possuíam no momento do fechamento da conta antiga, ou quem sabe, resgatar a própria conta. O tempo de cliente é o principal indicador de confiança que os bancos têm das pessoas físicas. É ele que define os valores de cheque especial, limite de cartão de crédito e juros de empréstimos.


Declaração de imposto de renda

Muitos de nós fomos declarados como dependentes de nossos pais para a Receita Federal. Essa regalia aplica-se em casos bem específicos. Nós nos enquadramos predominantemente no caso de estudantes universitários com menos de 24 anos, o que justifica a dependência. No meu caso, e no de alguns outros poucos intercambistas, retornei ao Brasil com mais de 24 anos e terei que declarar meus impostos no ano que vem por minha conta. Aqui vai uma breve lista dos casos de dependência e que eu encontrei neste site:

1-       Companheiro (a) com quem o contribuinte tenha filho ou viva há mais de 5 anos, ou cônjuge;
2-       Filho (a) ou enteado (a) até 21 anos de idade, ou, em qualquer idade, quando incapacitado física ou mentalmente para o trabalho;
3-       Filho (a) ou enteado(a) universitário ou cursando escola técina de segundo grau, até 24 anos ;
4-       Irmão (ã), neto (a) ou bisneto(a), sem arrimo dos pais, de quem o contribuinte detenha a guarda judicial, até 21 anos, ou em qualquer idade, quando incapacitado física ou mentalmente para o trabalho;
5-       Irmão (ã), neto (a) ou bisneto (a), sem arrimo dos pais, com idade de 21 anos até 24 anos, se ainda estiver cursando estabelecimento de ensino superior ou escola técnica de segundo grau, desde que o contribuinte tenha detido sua guarda judicial até os 21 anos;
6-       Pais, avós e bisavós que, em 2007, tenham recebido rendimentos , tributáveis ou não, até R$ 14.992,32;
7-       Menor pobre até 21 anos que o contribuinte crie e eduque e de quem detenha a guarda judicial;
8-       Pessoa absolutamente incapaz, da qual o contribuinte seja tutor ou curador.


Para todos os efeitos isso é algo que só vai influenciar o ano seguinte ao ano de retorno e não é uma preocupação imediata, mas não custa nada lembrar-

O processo de readaptação

Este texto abre um novo marcador do blog, o guia de veterano. Ele provavelmente conterá poucos textos (talvez apenas este), mas deve ser útil para aqueles que voltaram de programas de intercâmbio. Não que eu vá dar a solução dos seus problemas - seu eu desse, eu cobraria por isso, ora! - mas talvez ajude o leitor com dor de cotovelo dos seus tempos dourados na Zoropa a entender o que está passando na sua cabecinha ainda atordoada pela diferença de fuso horário.


A depressão pós-intercâmbio existe...

... mas não é nenhum bicho papão e uma hora, cedo ou tarde, acaba. Talvez por isso eu tenha demorado tanto para escrever este texto, que eu já planejava desde antes de partir da França, pois eu queria publicar minhas impressões apenas depois que eu tivesse mais segurança de que eu já havia superado esse processo. Acho que é chegado o momento.

É verdade que a volta pro Brasil é desconcertante e pode ter N razões diferentes, então vou tratar aqui apenas do que valeu pra mim. Eu acreditava que chegaria aqui desacostumado com os hábitos, com a rotina, com as pessoas, que eu seria um estranho no ninho e viveria uma constante sensação de não mais pertencer a essa realidade, além de soltar expressões em francês a torto e a direito. Equivoquei-me. A impressão geral é de que eu nunca saí daqui. Tudo me parece banal, do ônibus ao supermercado.

O desconforto então não foi causado por uma readaptação aos costumes brasileiros, mas à perda de algumas coisas que me eram muito caras. A principal foi o conceito de casa. Eu já reparara antes, quando voltei ao Brasil durante as férias, que eu chamava meu apartamento em Nantes de casa com muito mais facilidade do que este apartamento onde eu vivi durante vinte anos. Eu senti de imediato o incômodo de não poder organizar a casa da forma como eu gosto, não pode trazer visitas ou fazer refeições para os amigos, cosias que tinham se tornado tão naturais para mim em Nantes. Acho que esse foi o aspecto mais perturbador e o que me levou a cogitar durante um bom tempo a arrumar um emprego para me mudar para outro lugar sozinho ou com um amigo. A ideia continua, mas não com a urgência que havia antes e sim com a intenção de resgatar o que houve de bom da experiência de morar sozinho e com amigos.

Outro fator de tensão muito grande foi o fato de eu ter voltado cedo - fui o primeiro brasileiro da minha turma a voltar por conta de decisões e imposições desatinadas do coordenador do programa na minha universidade. Meus amigos estão todos na França ainda, fazendo um estágio mais longo, aproveitando esse último semestre na Europa enquanto eu fui obrigado a voltar pro Brasil e recuperar cinco semanas de aula. A primeira atividade que eu fiz na universidade foi uma prova da disciplina mais difícil do semestre. A terceira foi outra prova. Não bastasse todo o alvoroço típico da vida maso-acadêmica de um estudante de engenharia -  potencializada por cinco semanas de aulas perdidas -  eu ainda estou às voltas com toda a burocracia para a validação das disciplinas que eu fiz na França e que me permitirá diplomar-me antes de completar uma década de universidade.


A influência do clima

Eu me queixava muito do clima na Europa. Da escuridão invernal, do céu sempiternamente cinza, do frio... Costumava dizer que isso era um dos principais motivos para a minha depressão e desmotivação, que - vejam só - eram sempre mais intensas no outono e no inverno.

Eu não estava errado. Nos primeiros dias eu vivi um período de disposição intensa, acordava-me naturalmente às 6h00 e ia com toda a disposição do mundo para a universidade. Tentei ver isso com imparcialidade, julgando talvez ser um jet lag positivo. Agora posso afirmar sem dúvida alguma que o clima do Ceará - ensolarado e mais quente que o inferno em dia de pane de ar-condicionado - é fundamental para o meu corpo. Mesmo, apesar da volta da preguiça e dos três toques seguidos no botão Soneca do despertador, eu vejo que meu rendimento médio é muito superior ao que eu apresentava na França.


A aceitação da tatuagem


Vamos falar de um assunto polêmico, a tatuagem. Isso agora é assunto de readaptação dos outros a mim. Eu achava que meus pais iam ficar horrorizados, mas aparentemente tudo se passou bem. Meu pai, que eu acharia que estaria me esperando no aeroporto com um facão pra arrancar-me o braço, ficou olhando o desenho, fez um comentário aqui e ali e só. Minha mãe soltou um "é linda, mas grande demais". Ok, better than expected.

Na universidade tudo se passou bem. Via de regra aceitação positiva e entusiasmada dos meus colegas. Os dois professores que eu mais respeito no meu curso, meu orientador e a antiga orientadora dele, não ligaram e minha imagem para eles não foi prejudicada. Um outro professor fez alguns comentários jocosos mas num clima amistoso. Um quarto professor não fala nada, mas não consegue esconder os olhares enviesados de choque.


Mudanças são inevitáveis

A despeito do que eu disse antes, que a sensação é de que eu nunca deixei o Ceará, é evidente que mudanças acontecem. Lógico que tais mudanças são menos perceptíveis para os que voltaram, mas elas são visíveis ao menor olhar daqueles que ficaram. A maior parte é anedota pura: elas não têm importância, mas vale a pena falar delas.

A primeira diz respeito ao consumo de água. Na França quando você quer água basta colocar um copo debaixo da torneira e mandar ver. Eu tinha o hábito de tomar água após escovar os dentes, lavar as mãos ou durante o banho, de tal forma que beber um copo com água virou um hábito obsoleto. Como a água era da torneira eu só poderia tomar quente ou natural. Eu surpreendi minha mãe nos primeiros dias ao pegar o copo e beber água saída direto do filtro, sem refrigeração alguma.

A segunda também surpreendeu um pouco meus pais na cozinha. O meu paladar se tornou menos tolerante a açúcar e eu tenho uma vaga ideia da razão. Quando eu acordava atrasado para o estágio eu costumava tomar café da manhã no caminho, num McDonald's na estação de La Defense. Manobrar dois croissants, um copo de café e ainda colocar e dissolver açúcar era uma tarefa complicada, de tal modo que eu aboli o ato de adoçar o café para ganhar tempo e diminuir o risco de queimaduras enquanto corria com meu café da manhã nas mãos. Ao fim de duas semanas eu simplesmente não conseguia mais suportar café com açúcar e essa mudança no paladar se propagou para outros alimentos e bebidas.

Ainda sobre paladar... Meu pai costumava me recriminar por eu não gostar de vinho. Esse sermão era praxe todo fim de ano, quando ele me obrigava a tomar pelo menos um gole de vinho e/ou espumante durante as celebrações. Lembro-me que tive a impressão de que para ele o fato de eu ir para a França, onde provavelmente eu aprenderia a apreciar vinhos, era mais importante do que o diploma ou todo o resto. Existe uma discussão célebre que tive com meu pai há muitos anos atrás quando ele me ofereceu um cálice de vinho madeira seco (R$22,90 o litro) que tinha sido presenteado por uma amiga portuguesa e eu disse que preferia vinho Padre Cícero (R$9,00 por cinco litros). Eu de fato voltei com o paladar mais apurado para vinhos e já tive o prazer de tomar um tinto chileno excelente. E tive o "prazer" de tomar um vinho sangue-de-boi novamente e me perguntar como é que eu conseguia gostar daquele troço! Não me julguem pedante por este parágrafo, por favor.

Minha família diz que eu voltei mais cuca-fresca, menos estressado, mais maduro. Isso é bom, talvez seja verdade. Talvez eu realmente tenha alcançado um estado de maior serenidade, de levar a vida com um pouco mais de humor e isso me faz um bem danado. Meus colegas não perdem a oportunidade de que eu voltei gay, segundo uns, ou mais gay, segundo outros. Essa é a desvantagem de ir para a França, a associação é imediata, portanto prefiram intercâmbios na Alemanha e vocês serão considerados mais machos ao voltar. 


O significado da tatuagem

Eu atrasei deliberadamente a publicação deste texto, mas nunca me passou pela pela cabeça deixar de escrevê-lo. Eu cheguei mesmo a prometer um texto sobre minha tatuagem no post da ressurreição do blog. Entretanto, eu deixei para escrever sobre isso agora que todos já a viram, já comentaram, já aprovaram entusiasdamente ou já desaprovaram categoricamente. Em suma, publico agora porque não vai mais causar bafafá.


Por que uma tatuagem?

Não sou nenhum fã especial da arte corporal. Não mais do que qualquer outra arte. E nem menos também. Sempre admirei e desde 2005 sempre quis ter uma, mas nunca encarei isso como um modo de vida, a despeito de (e com respeito a) todos os que vêem dessa forma. Entretanto, acho que uma tatuagem deve transcender a questão estética. É patético marcar o corpo permanentemente com algo que você apenas julga bonito. A nossa noção de belo evolui com o tempo e o que outrora parecia belo não é mais. Por isso queria algo que tivesse significado e um significado forte, não um simples blá blá pra justificar.

Eu estava decidido a voltar da França com uma tatuagem, mas não compartilhei isso com ninguém. Eu finalmente alcançara a maturidade que eu julgava necessária para fazer uma (e a coragem também). Agora só faltava o desenho. Inicialmente eu queria algo que representasse meu intercâmbio e todo o valor que ele pode ter na vida de um jovem de vinte e poucos anos. Ou algo que representasse o local onde eu morei durante esse tempo.


A primeira idéia
 
Sou fã da estética celta, dos nós, das cruzes e sobretudos dos trisqueles e triquetas. Coincidentemente eu fui enviado para uma cidade com uma herança céltica ainda forte. Nantes, como já disse várias vezes antes, está inserida culturalmente, embora não mais geograficamente, na região da Bretanha, o berço de uma das seis nações célticas. Portanto, pareceu-me bem natural tatuar um símbolo celta. Pensei no trisquele, pois acho o seu significado muito rico e também o acho um símbolo muito bonito. Pensei em tatuá-lo no centro das costas.
O trisquele

Apesar de tudo isso, não acho que o significado do símbolo fosse forte o suficiente para eu gravá-lo no meu corpo. Eu senti que eu deveria continuar procurando outro motivo para desenhar.
Os faróis

Quando eu era pequeno, pequeno o suficiente para eu não ter nem idéia de quando isso aconteceu, eu vim uma foto que mexeu um bocado comigo. Ela estava à venda numa loja de decoração com temática naútica que existia num shopping bem conhecido aqui de Fortaleza. Aqui está ela:

Se ponham no lugar de um moleque de seis anos ou menos e tentem imaginar com que olhos eu vi isso. Uma onda gigantesca contornando a base de um farol e prestes a engolir o guardião que desavisadamente posta-se do lado oposto. Se você me permite um curto de momento de divagação agora (um mais longo virá, prepare-se) as informações que eu tirei dessa foto devem ter sido:
  • Os homens são frágeis e não são nada se comparados com as forças da natureza.
  • Faróis são algo resistente pra caramba!

E eu devo ter esquecido isso logo em seguida, pois mais nada na minha infância me dá pistas a respeito da minha relação com faróis. Muitos anos passaram e eu ingressei na Escola Naval. Lembro-me bem que tivemos no fim do ano aulas sobre sinais e balizas e que um dos assuntos foram os faróis. Descobri então que cada farol é único, que dois faróis não compartilham o mesmo padrão de luzes, o mesmo sinal de rádio, a mesma geometria da torre e nem a mesma pintura. Cada um tem sua "impressão digital". Um dos nossos livros era a lista de faróis da costa brasileira, que eu lia com atenção durante as aulas de Navegação. Em algumas vezes em que fui à bibilioteca, além dos livros de aviação e os livros de fotografia de grandes veleiros, eu me peguei olhando fotos de faróis.

Uma das lembranças mais nítidas que eu tenho desse ano foi o regresso do meu embarque na fragata F45 União. Tínhamos ido ao porto de Vitória no Espírito Santo e estávamos então nos preparando para entrar na Baía de Guanabara. Era um fim de tarde de outubro (isso não tem nada a ver com música do CPM 22) e o sol havia se posto há pouco tempo. Passávamos então ao lado do farol da Ilha Rasa, uma torre quadrada, branca e de arquitetura ibérica. E essa imagem nunca saiu da minha cabeça. Foi aí que eu descobri essa paixão pelos faróis.

Já como civil eu continuei cultivando essa paixão. Olhava fotos na internet e numa dessas ocasiões achei a bendita foto da minha infância. Ela foi tirada por um fotógrafo francês chamado Jean Guichard. Ele é bretão e as fotos mais conhecidas dele são - advinhem - de faróis bretões. É claro que tudo isso eu ignorava completamente e só fui descobrir na época em que eu me candidatava para o Duplo Diploma e já via Nantes como um objetivo, e não uma possibilidade. E foi nessa época que eu descobri a herança cultural bretã da cidade.


O significado, finalmente
Por mais estranho que pareça os faróis nunca me vieram à cabeça quando eu pensava na tatuagem. Eu já possuía um livro de faróis da costa Atlântica da Europa na estante, uma foto do Ar-men pendurada há mais de um ano sobre a minha cama e fotos de faróis que me serviam de papel de parede no computador. Ironicamente a relação entre os faróis e a tatuagem me fugia continuamente. Foi de repente que eu me lembrei de tudo isso e percebi que além de ser algo de que eu gostava profundamente, era também algo rico de significado.

Eu aprecio bastante a estética da tatuagem japonesa, embora não seja lá muito atraído pelos significados da maior parte delas. Eu procurei um tatuador de Nantes cujo trabalho em tatuagens orientais me agradasse e lhe pedi um "farol em estilo japonês". Discutimos a tatuagem e quais elementos colocaríamos junto com o farol. E o resultado - após duas sessões de quatro horas realizadas em março e abril, um bocado de dor e muitos euros a menos - foi o seguinte:


Tem um pouco de photoshop para aumentar o contraste e melhorar a compreensão do desenho

Eu convido vocês a lerem novamente o texto sobre a ressurreição do blog. Existe uma parte dele - entitulada Três coisas a lembrar - em que eu falo sobre minha visão pessoal do mundo. Os elementos da tatuagem têm uma relação direta com cada um desses pontos. Elas também são dispostas de uma maneira lógica: o elemento mais visível sob a manga da camiseta corresponde ao ponto mais genérico, enquanto que o mais escondido (e mais pessoal) representa a idéia mais profunda.

  • A mensagem na garrafa - Ter uma vida plena de histórias para contar: Nossas histórias são as mensagens que colocamos nas garrafas e atiramos ao mar.
  • O barco - A vida é feita de encontros: Mas os encontros só acontecem se nos lançarmos ao mundo, representado pelo mar, e acharmos outras terras e pessoas (barcos).
  • O farol - Alegria e felicidade não são a mesma coisa: A estabilidade do farol vai ao encontro das idéias de que a felicidade corresponde a um estado de equilíbrio, e não alegria.
Esse é o significado do panorama geral, dos elementos escolhidos e da maneira em que eles se relacionam. Entretanto, eu gostaria de divagar um pouquinho mais sobre o papel do farol nessa história toda.

Faróis são construções robustas, que aguentam provações fortes. Eles permanecem de pé apesar da fúria dos elementos ao redor e ainda assim são capazes de lançar uma luz sobre os problemas e sugerir um caminho a seguir. Essa é a imagem que muita gente faz de mim sabe-se lá por qual razão. Ela talvez tenha sido verdadeira (ou quase) por um bom tempo, mas durante os últimos anos eu fui bem menos "farol" do que eu gostaria de ter sido.

Essa é uma qualidade que eu gostaria de resgatar. Mais do que isso, é uma qualidade que eu gostaria de perenizar e não perder mais. Se as pessoas que me conhecem esperam segurança, confiança, tranquilidade e solidez de mim e eu gosto de oferecer isso, por que não gravar um lembrete para que sempre que eu me afaste desse caminho eu tenha como retornar?

Já ouvi várias pessoas dizendo que não é aconselhável tatuar-se em um lugar que seja visível no espelho para não enjoar do desenho. Porém, eu decidi mudar o local da tatuagem das costas para o braço. Eu sei que um dia eu me cansarei do desenho, que ele desbotará e tudo o mais, mas eu quero todo dia me lembrar de todo esse significado e manter essa atitude que me é tão cara.

Além disso, o braço direito é o braço que eu estendo para apertar a mão de uma pessoa e é também o membro com que eu toco o ombro de uma pessoa quando dou os "dois beijinhos". Ao fazer isso eu me obrigo a lembrar que junto com o braço estou oferecendo à pessoa um símbolo de segurança e tranquilidade e me obrigo a agir assim. No trabalho ou na vida pessoal, com o desenho coberto pela manga da camisa ou exposto ao sol, como profissional ou como amigo ou como amante, cada vez que eu estendo o meu braço eu ofereço junto segurança e tranquilidade. Todos os dias então, a cada aperto de mão ou beijo,  eu tenho um sem fim de oportunidades de me lembrar do que eu sou, do que espero deste mundo e do que eu espero que eu seja e lembro-me de agir conforme a esse pensamento.

O último blues

O blues é um estilo musical oriundo de ritmos dos grupos americanos de origem americana do sul dos Estados Unidos, sobretudo a Louisiana, uma antiga colônia francesa na América. O termo blues é bastante significativo e eu coloco aqui em seguida a definição que eu encontrei na wikipedia:

The term "the blues" refers to the "blue devils", meaning melancholy and sadness

Melancolia e tristeza. O significado de certa forma combina com os assuntos predominantes do blues: o álcool, as mulheres e o próprio ato de compor e tocar o blues.

Sou fã incondicional do estilo, do minimalismo que é capaz de transformar uma escala de cinco notas em algo tão rico de expressão e sentimento. Não nego que desde que comecei a tocar guitarra um dos meus maiores prazer é devanear, improvisar sobre uma harmonia blues por minutos a fio.

Quando cheguei em Nantes na tarde de 26 de agosto de 2009, se eu me lembro bem, eu encontrei a cidade fervilhando com um festival de música e desportos náuticos. Nos inúmeros palcos espalhados às margens do rio artistas destilavam o melhor do jazz da região e de alhures. Eu rapidamente elegi meu palco preferido: o palco blues. Passei dois ou três dias orbitando ao redor daquele palco, um copo de cerveja barata na mão, nas pontas dos pés sobre os trilhos do bonde. Acho difícil imaginar um começo melhor para o meu intercâmbio. 

Aquilo me impressionou de tal maneira que eu decidi que estaria presente na edição seguinte e, como não poderia deixar de ser, assistiria aos shows do mesmo palco. Modifiquei as datas da minha viagem para poder comparecer ao festival. Mais uma vez saí de lá com uma boa dose de boas lembranças, a maior parte delas ao lado de pessoas queridas. Lembranças com gosto de cerveja e gosto de algodão doce e nutella. Lembranças quentes como as chuvas de verão que molharam a cidade durante o festival mas não me fizeram arredar pé dali.

Por mim eu assistiria mais uma vez o festival antes de deixar a França. Julguei que, tal qual as duas edições anteriores, ele se desenrolaria no último fim de semana de agosto. Mas nesse período fui ver o Roger, um dos grandes amigos que fiz ao longo desses dois anos, em Toulouse. Foi com certa tristeza que eu pensei no festival e como eu perdera a possibilidade de estar lá uma terceira vez.

No meu último fim de semana na França eu fui a Nantes para encontrar uma parte dos amigos que fiz por lá: meus irmãos adotivos, meus bixos, alguns dos meus colegas de turma brasileiros e franceses. Encontrei também os bixos dos meus bixos, uma quinzena de jovens tão deslumbrados e eufóricos quanto eu quando estava no lugar deles. Estes eu não convivi por mais do que três dias, mas deixaram um misto de saudade e, por que não, blues justo por saber que o tempo de convivência não passaria disso.

Ao chegar em Nantes eu tive uma ótima surpresa. Diferente do que eu pensava o festival neste ano aconteceu no primeiro fim de semana de setembro. Ali estava minha chance de assistir à minha terceira edição do festival e eu agarrei-a. Foi delicioso relembrar...

  • As primeiras palavras em francês, desajeitadas e tímidas, trocadas com os ambulantes.
  • A degustação dos quitutes senegaleses cujos ingredientes e métodos de fabricação (felizmente) só fui conhecer muito depois. Muitos deles eu ainda desconheço, para ser sincero.
  • A surpresa que tudo e qualquer coisa me causava, do horário do pôr-do-sol às placas de trânsito.
  • Os cheiros e sabores.
  • A música.
Tal como um ciclo, meu intercâmbio terminou como começou. Isso não significa que o início e o fim foram iguais. Um acorde que inicia e termina a mesma música deixa duas impressões bem distintas em quem o ouve.

Esse foi meu último blues na França. Talvez não o derradeiro, pois nunca se sabe. A música não parou, existem outras coisas serem contadas. Este blog começou antes mesmo de eu viajar para a França, contando alguns dos meus perrengues com o financiamento. Acho natural que ele tenha continuação depois que eu volte, afinal o processo de radaptação faz parte da experiência e me sinto no dever de contá-lo.

Estamos saindo da fase do "Nantes tarde do que nunca" para a do "Ceará que eu vou me acostumar?". Não, o blog não vai mudar de nome! Mas nesta nova fase os questionamentos e os relatos vão ser ligeiramente diferentes.