Picolé de rapadura 2

Hora local: 13:57

Nota: Acabou de chover granizo (1 mm de diâmetro).

A odisséia de Cadis

Eu sou um cadis (Nota do Tradutor: carrinho de compras). Eu fui fabricado junto com muitos outros como eu. Minha função é ajudar, evitar que as pessoas carreguem muito peso. Minhas rodas foram feitas para o chão frio e lisinho de shoppings centers e supermercados. Meus colegas estão espalhados em muitos lugares da Europa e quiçá do mundo. Eu recebi uma bandeirola do IKEA (N.T.: Loja de móveis e artigos domésticos muito conhecida na França) assim que cheguei em Nantes.

Sempre tive uma vida muito tranquila. Diria monótona, até. Mercado - esteira rolante - garagem - esteira rolante - mercado. Verdade que vez por outra tem alguém que me sobrecarrega, mas nada que os meus fabricantes não tenham previsto.

Mas tudo mudou há três semanas. Três rapazes me tomaram emprestado, nada de errado nisso. Eles traziam muitas e muitas caixas e não pareciam ser daqui. Falavam uma língua estrangeira e que às vezes parecia não ser uma língua só: um chiava muito, o outro falava "tchê" e tinha um dos olhos puxados que falava "meu" o tempo inteiro. Percebi que alguma coisa de estranho estava acontecendo: nenhuma das caixas deles era de mercadoria da Ikea nem das lojas do lugar onde eu moro. De onde veio aquilo? (Nota do Editor: do Office Depot, uma loja de artigos de escritório distante 2 km do Ikea) Eles puseram mais de 100 kg de carga em mim, mas não havia problemas era só aguentar até a garagem que tudo aquilo ia ser levado no bagageiro de um carro.

E a caminhada continuava e eu não parava. Vi muitos e muitos carros parados, mas em nenhum deles eu parei. E foi então que eu vi a luz. Na verdade, as luzes. Amarelas, altas. E então eu vi a rua, algo que eu vira poucas vezes. Fiquei na calçada e eu então eu vi aquele monstro branco e comprido chegar (N.E.: o bonde). E qual não foi minha surpresa quando aqueles três me colocaram dentro. E eu vi tantas coisas, vi um rio, vi navios, lojas, bares, um mundo completamente do shopping em que eu vivo.

E cheguei num lugar que eu não conhecia, a École Centrale Nantes (N.E.: a 15 km do Ikea). Os três sequestradores me descarregaram e me largaram embaixo de uma escada. Pouco depois eles voltaram com um microondas velho, grande e pesado e largaram em cima de mim. E lá eu fiquei, por duas semanas.

Foi então que o mesmo chiador e o mesmo baixinho dos olhos puxados voltaram, acompanhados de um cabeludo e de um outro que falava cantando (N.T.: eu). E lá fomos nós de novo. Antes de chegarmos à rua eles decidiram me fazer de brinquedo. Subiam em cima de mim, deslizavam pelos corredores e pelo hall e filmavam tudo. Finalmente eles cansaram e fomos encontrar o monstro comprido de novo. Entramos sob os olhares de todos os presentes. Eu e aquele micro-ondas gordo em cima de mim, que eles colocaram ali somente para fingir que levavam alguma coisa. A intenção deles era me devolver e depois jogar o micro-ondas no lixo. Foi então que o "cabeludo" e "cantor" acharam que seria uma boa idéia ficar com o micro-ondas para tirar as peças úteis de dentro.

Saímos do monstro comprido, num lugar cheio de lojas e de gente. Todos nos olhavam, alguns riam. Eu fiquei com vergonha. O que afinal havia de errado em mim para que todas as pessoas me olhassem daquele jeito? Talvez se eu não estivesse levando aquele micro-ondas velho e gordo em cima de mim as pessoas não me julgassem tanto. Fomos encontrar outro monstro comprido, mas os quatro sequestradores acharam melhor encontrá-lo um pouco mais longe para evitar confusões com uns homens de verde que estavam lá (N.E.: Os fiscais da empresa de transporte). O começo foi ok. As calçadas me lembravam muito o chão que eu estava acostumado.

Foi então que nós encontramos calçadas não tão lisinhas. Minhas rodas rangiam e o meu corpo de aço fazia um barulho infernal a cada solavanco que eu dava. Tentamos entrar no primeiro monstro comprido que passou, mas havia muita gente. Fomos expulsos do segundo. Entramos escondidos no terceiro. As pessoas continuavam nos olhando. Então eu vi minha casa se aproximar, o Ikea. Finalmente aquele inferno ia terminar. Que vergonha chegar em casa maltratado daquele jeito e levando um forno gordo, preguiçoso e sem classe.

Mas minha alegria durou pouco. O "chiador" e o "olhos puxados" ficaram lá em casa enquanto o "cabeludo" e o "cantor" me levavam mais uma vez para fora. E quando eu achava que já tinha passado por tudo, me vejo deslizando aos trancos e barrancos em calçadas ásperas, cheias de folhas caídas e sob a chuva. Deslizei muito, muito... Não aguentava mais. Chegamos até uma rua bem grande, muito mais larga do que as outras que eu havia visto e onde os carros passavam muito rápido. A calçada era terrível, esburacada, áspera. Minhas pobres rodas doíam a cada vez que aqueles dois malucos forçavam passagem sobre um buraco elameado. E o pior é que aquele gordo branco ainda pulava em cima de mim a cada tranco.

Deslizei muito (N.E.: Os dois quilômetros entre o Ikea e o Office Depot). Eles me largaram do lado de fora de uma grande loja por alguns minutos, tempo suficiente para descansar um pouco e ver o meu estado geral: folhas, pedras e pedaços de sacos plásticos agarrados nas minhas rodas. Meu descanso durou pouco, pois eles logo voltaram com duas caixas enormes (N.E.: Duas cadeiras de escritório de 20 kg que estavam em uma promoção muito boa e aquele era o último dia para comprá-las com esse preço). Iniciamos o caminho de volta.

Não podia ficar pior, não podia. E minha casa estava tão perto. Mas ficou. Com o balanço, uma das minhas peças se soltou (N.E.: o compartimento onde se coloca as moedas para pegar o carro emprestado) e os sequestradores começaram a me encher de lixo (N.E.: uma calota de um Renault e símbolo da Peugeot caído de um carro encontrados pelo chão).

Mas apesar de tudo, cheguei... O "cabeludo" ficou no ponto de encontro com o monstro comprido junto com as caixas, o gordo branco e o lixo e o "ccantor" me deixou em casa. Eu estava num estado horroroso, sujo, rangendo e cheio de folgas. Não sei o que aconteceu com eles, devem ter entrado naquele monstro comprido de novo. E se tiverem ido para o inferno eu não me importo.

Epílogo

Voltamos com as tralhas (cadeiras, micro-ondas e as peças dos carros) dentro do bonde ainda atraindo olhares, mas menos do que quando estávamos com nosso companheiro de aventura que narrou a maior parte da história. Ao todo, nós passeamos com um micro-ondas de 25 kg por 34 km, dos quais 4 km com o nosso valoroso carrinho de compras do Ikea sobre a lama, as pedras e as folhas.

Documentamos bem a aventura em vídeo e em breve colocarei uma compilação aqui. Ignoro o destino do nosso camarada, mas acredito que os funcionários do Ikea devem ter achado muito esquisito aquele carro cheio de lama e todo frouxo...

P.S.: Essa aventura me motivou a criar um novo marcador para o meu blog: "sem noção". Aproveitem.

Pouce d'Or Parte 4

12) Contra todas as probabilidades
Chegamos numa estação de serviço a oeste de Paris e nada surpreendentemente fizemos isso entrando por uma contramão. Estacionamos na loja de conveniência e descemos. Um carro acabava de chegar. Eu preciso contar o resto? O título dessa seção não lhe sugere algo? Você não acredita? Pois é, eu até agora não acredito também. O Tobias e a Anaëlle desceram do carro. Espanto, surpresa, um abraço apertado e todos expressaram a intenção de transformar nosso grupo no único quarteto do Pouce d'Or. Nos despedimos dos dois malucos de Paris após eles nos mostraram orgulhosos o motor V6 responsável pela nossa aventura nas periferias da cidade.

No posto não paravam de chegar carros do oeste. Eu e o Loïc conseguimos sem muita dificuldade uma carona num motor-home que iria para Nantes em meia-hora, mas não havia espaço pros outros dois. Voltamos e explicamos a situação. Decidimos ajudá-los a procurar uma carona. Terminamos por encontrar um motorista que poderia levá-los. Mas algo estava errado, tínhamos nos encontrado pela terceira vez ao acaso e essa então tinha sido a mais surpreendente: a última vez que nos víramos foi ainda na Alemanha. Explicamos a situação para o homem. Ele pareceu se divertir muito com toda a história e aceitou nos levar todos para Nantes. Partimos às 21:45

Ele era o diretor financeiro de uma divisão de um grande grupo industrial francês. A sua história era de um legítimo self-made man. Chegou ao seu emprego atual sem diploma universitário, apenas galgando as posições dentro da empresa, que ele definiu como uma empresa que procura competência e não está nem aí para diploma. Perguntamos, como de praxe, se não o incomodávamos. Ele afirmou alegremente que ele gostava que estivéssemos com ele, pois, do contrário, ele sentiria sono, pararia para dormir e chegaria ainda mais tarde. Nossas histórias o mantinham acordado e o fato de chegar mais cedo em casa o agradava.

Terminamos por chegar em casa muito mais cedo do que esperávamos, às 00:20. Tempo suficiente para colocar um pouco do sono em dia. Tiramos a derradeira foto da nossa viagem, já com a residência ao fundo e à esquerda.




13) A Escola desperta ao fim da aventura
Acordei mais cedo pela manhã, para chegar no Bureau de Estudantes antes das oito e comprovar nossa presença. O assuntos das conversas pela manhã era a competição. A histórias, os destinos, todos os assuntos relacionados ferfilhavam nas conversas nos corredores. Acontecimentos inusitados e situações inacreditáveis eram contadas e passavam de boca a boca durante todo dia. Àqueles que conseguiram uma boa distância, aos que ultrapassaram os 1000 km, tapinhas nas costas e felicitações. Havia também as histórias de fracasso, que nem por isso eram menos interessantes que as histórias de sucesso. Alguns eram vistos como heróis, outros como malucos, outros como fracassados, outros como desocupados. Ao longo do dia recebíamos informações das equipes que ainda não tinham voltado. Os loucos da Polônia estavam ainda na Alemanha ao meio-dia e um deles perdera sua carteira.

O resultado saiu pela tarde. Os campeões da sétima edição eram uma dupla de alunos do segundo ano que conseguiram chegar a Lisboa. Em segundo lugar, um empate entre duas duplas: 1211 km até Munique. Nós, o quarteto oficioso que percorreu mais de 1000 Km juntos. Sensação maravilhosa de conseguir um resultado bom, ainda que não tenhamos sidos os vencedores. Conseguimos uma honrosa sexta colocação no Top 25 da história da competição.

Atualizações do front: a história de Lisboa era uma mentira. O presunto (4,62 kg na verdade) é nosso e já tá na geladeira!

Eis o link (em francês) com os resultados.


14) Anedotas de outras equipes
Como você pode ver, meu caro e exausto leitor, eu passei por uma aventura e tanto. Provavelmente a maior da minha vida. Não é ousado demais afirmar que outras equipes passaram por muitas situações tão engraçadas quanto e eu me furto a citar algumas delas.


O método Tanguy
Tanguy (pronuncia-se Tanguí) é o cara que foi eleito Mister Bus no meu ônibus. Ele bolou um método muito interessante para tentar conseguir caronas. Como eu disse antes, muitas pessoas têm medo de dar carona, pois temem que os caroneiros sejam mal intencionados. Foi por isso que o Tanguy fez o seguinte artifício:
Uma carinha sorridente e um cartaz que diz "nós somos gentis". Apesar disso, nós sabemos que existem muitos motoristas que não dão caronas porque são uns tremendos de uns babacas. O método Tanguy também prevê esses casos:
Ele me confessou que em um determinado momento um carro buzinou ao longe e reduziu a velocidade ao se aproximar. Ele jurava que ia receber uma carona. No entanto, o motorista continou em marcha lenta e passou por eles com o dedo médio em riste (o jeito bonito de dizer que o cara tava dando cotoco). Acredito que a plaquinha tenha sido muito bem usada.


Caronas com romenos
Foram motoristas romenos que possibilitaram o recorde do ano passado, e que continua invicto depois desta edição. Não é de surpreender que muitas pessoas quisessem pegar carona com romenos, embora isso seja o tipo de coisa que o acaso escolhe, não nós.

E de fato algumas equipes conseguiram, mas a coisa não funcionou tão bem como no ano passado. Uma equipe entrou num carro onde havia uma pistola no banco de trás. É o tipo de carro onde alguém prudente não entraria.

Outra equipe conseguiu carona com um comboio de romenos, com cinco carros de luxo que iam de Cadillac a Mercedez-Benz. O motorista deles, um rapaz de apenas dezenove anos, disse que elas haviam acabado de comprar os carros. Durante toda a viagem ele se comunicou com os outros motoristas com o celular e com sinais de luz. Um pouco suspeito, não acha?


O troféu échec
Échec significa fracasso. Esse prêmio é quase tão valioso quanto o prêmio ao vencedor. Uma bela história de fracasso é difícil de conseguir. Aquele fracasso retumbante, pungente, que não deixa dúvidas de quem foram os maiores perdedores. E se os caras tiverem espírito esportivo, eles vão saber se divertir com o fato.

Uma equipe em particular estava bastante cotada para o troféu. Eles conseguiram a primeira carona às 13:30 e eu gostaria de lembrar que a partida foi dada às 09:00. Descrentes da sua viagem, eles decidiram apenas dar a volta em Nantes, passando por todos os entroncamentos do anel viário da cidade. Voltaram no fim do dia. Échec total.

No entanto, uma outra equipe entrou no páreo com sérias chances de ganhar. Lembra-se dos caras da Polônia? Pois é. Após pegar carona com um gay que os assediou, andarem a 220 km/h (em média) em outra ocasião, andar num caminhão de vacas e chegar com 24 horas de atraso eles se tornaram os mais fortes concorrentes ao troféu.

Infelizmente, um dos integrantes não tem muito espírito esportivo e mandou esta imagem para todos os que cogitam votar neles para o prêmio. O fato suscitou alguns celeumas na lista de emails do grupo e os ânimos se exaltaram um pouco. Mas o fato é que eles foram imprudentes, não previram que a volta era mais difícil e sofreram com as conseguências disso. Que culpa os outros têm? O melhor é relaxar e gozar, aproveitar as boas histórias que eles devem ter para contar também e se divertir junto com os outros. Esse é o espírito do Pouce d'Or, e do qual eu compartilho integralmente: o lugar para onde se vai não importa, o importante é o que se traz de lá.

Pouce d'Or Parte 3

9) Um gostinho de derrota
Quando chegamos, como já havia virado costume, renovamos nosso acordo de independência de caronas. Em meia hora eles conseguiram uma carona. Havia espaço apenas para três pessoas, então sobramos.

Zanzamos pelo posto por mais meia ou mais. Ouvimos muitas negativas e houve até pessoas que se apressassem para entrar no carro com medo de nós. Isso nos abateu. Para completar, o cansaço dificultava os sorrisos e mesuras que fazíamos no começo da viagem. Na mão, debilmente segurado, o cartaz "Frankreich". Por fim uma senhora aproximou-se e tentou dizer algo. Ela só falava alemão, mas conseguimos entender que ela estava indo para uma cidade bem próxima da fronteira com a França. Olhamos no mapa e vimos que não era um bom negócio, pois a estrada que seguia de lá até o outro lado da fronteira era pequena e provavelmente seria difícil conseguir uma carona.

Resolvemos aceitar uma carona até a próxima estação de serviço. No volante, um rapaz vietnamita que eu não consegui identificar se era filho de criação ou marido da mulher. Também não estávamos com muito saco de fazer os malabarismos linguísticos no papelão e passamos quase toda a viagem em silêncio.

Chegamos na estação seguinte e demos de cara com um carro de placa francesa. Agradecemos efusivamente pela carona, mas a pressa para abordar o motorista francês antes que ele partisse nos fez esquecer de tirar a foto com nossos benfeitores. Uma pena, pois o francês nos negou a carona. Estávamos próximos de Sttutgart. Víamos muitos carros de placas da Bélgica e de Luxemburgo, o que poderia ser interessante para nós, mas ninguém parecia disposto a dar carona.

Não sei quanto tempo ficamos lá, mas estavámos muito cansados da noite mal-dormida e o tempo parecia se arrastar. Concluímos que uma placa pedindo carona para a França talvez assustasse um pouco os motoristas e decidimos escrever o nome da cidade mais próxima em que podíamos conseguir boas caronas: Mayheim. No momento em que escrevemos isso, um rapaz que já nos olhava há algum tempo com certa pena pareceu subitamente ter a atenção atraída. Ele se aproximou do seu carro, cochichou com a moça que estava no banco da frente e veio em direção a nós. Ele ia para Mayheim e nos oferecia uma carona.

Entramos no carro com um ânimo renovado e com um semblante que nada lembrava o abatimento de outrora. Conversávamos em inglês com os dois. Ele, um estudante de engenharia. Ela, uma estudante de direito. Contamos nossas peripécias. Não éramos mais só uma dupla de malucos pegando carona. Éramos uma dupla de malucos que tinha conseguido atravessar a França e metade da Alemanha em um único dia. Já tínhamos um currículo e isso começava a interessar as pessoas, a divertir, a ser um chamariz para uma boa prosa.

A conversa orbitou em torno das nossas histórias da viagem. Enquanto a prosa rolava eu prestava atenção nas estradas alemãs: largas, bem cuidadas, velozes. Súbito, passa uma Ferrari rasgando o asfalto do nosso lado e três carros de passeio que hilariamente tentavam persegui-la.

O jovem casal fez a gentileza de passar da saída que eles pegariam para nos deixar em uma estação de serviço mais movimentada. Nos deixaram o email e pediram notícias da viagem. Segue uma foto deles, tirada a 150 km/h:


Sim, ela estava com medo.


10) Quando o desespero começa a bater...
Chegamos na estação de serviço em Mayheim. Percebemos de imediato que o lugar era bastante grande e havia muitos carros estacionados. Utilizando a estratégia que utilizamos na vez anterior, fizemos uma placa para a próxima cidade: Saarbrücken. O casal nos ensinou a reconhecer placas de carro dessa cidade e de outras que pudessem ser interessantes.

A primeira coisa que fizemos foi identificar os carros estacionados que poderiam seguir viagem na direção da França. Encontramos dois carros com placas de Paris. Decidimos que cada um vigiaria um e abordaria seus ocupantes. Em quinze minutos os ocupantes do carro que eu vigiava apareceram. Era um casal de meia idade. Eu os abordei, contei um pouco a nossa história e eles me disseram que não estavam voltando para a França, mas saindo dela. Na verdade, eles estavam indo para Praga. Nesse momento deu aquele sentimento horroroso, que acredito que nem nome tenha, o sentimento do "e se". E se eles tivessem viajado no dia anterior? E se nós os tivéssemos encontrado? E se tivéssemos ido para Praga com eles? Um excelente atalho para sentir-se frustrado.

Os integrantes do outro carro não apareciam e enquanto isso fazíamos algumas outras abordagens, todas mal-sucedidadas. Embora houvessem algumas pessoas que visivelmente iam para Saarbrücken ou proximidades, nenhuma se propunha a nos levar.

A espera já passava de duas horas. Não conseguíamos acreditar que os integrantes do outro carro pudessem passar tanto tempo no restaurante. O Loïc perambulava entre os carros, procurando uma boa oportunidade. Eu já havia me largado sobre um banco, a mochila de um lado, e do outro o cartaz Saarbrücken e um mini-cartaz com um rosto sorridente desenhado. A cena deveria ser de uma ironia cômica, pois o meu semblante não tinha nenhuma semelhança com o cartãozinho que eu portava. Já não pensávamos em vitória, a nossa preocupação agora era chegar a tempo. Nossos cálculos pessimistas apontavam que não haveria tempo de margem caso acontecesse alguma eventualidade. Considerávamos para tanto que chegaríamos em Paris em três ou quatro pernadas e somávamos o tempo necessário para conseguir uma carona em cada parada.

Finalmente três pessoas falando francês saíram do estabelecimento. Ao vê-los eu tive a nítida impressão de que seria um novo fracasso, pois todos tinha um aspecto bastante esnobe, com roupas muito elegantes e um porte muito peculiar que é possível perceber nesse tipo de gente. Ainda assim os abordei e pedi uma carona para Saarbrücken. Eles hesitaram um pouco, perguntaram para onde íamos. Disse que nosso destino era Nantes via Paris. Eles consentiram em nos levar até Metz.

Não eram todos franceses. Havia uma italiana e um holandês. Eram habitués do meio artístico e voltavam de Praga, onde a mulher havia acabado de publicar um livro. A conversa deles orbitava sempre em torno de artes plásticas e arquitetura. A música que tocava dentro do carro: ópera. Nós nos sentíamos pouco à vontade nesse ambiente, ainda que eles fossem muito simpáticos. Aos poucos nós nos abrimos e eles também. Eles revelaram algumas das suas histórias de caroneiros, afinal todo mundo já foi jovem um dia e tem algo do tipo para contar. Um deles havia até participado de uma corrida maluca, cujo objetivo era chegar o mais longe possível de carro sem dormir. Ele foi o vencedor, tendo ido até a Síria.

Sinto que eles foram ganhando mais confiança na gente e eles nos ofereceram uma carona para Reims. Poucos minutos depois eles disseram que nos levariam até Paris, que era o destino deles. O fato de eles não nos terem oferecido a carona diretamente para Paris deve-se, eu creio, à necessidade que eles sentiram de nos sondar, de saber nossas intenções e se éramos pessoas confiáveis.

Eles nos deixaram num posto de gasolina num dos anéis viários de Paris, a leste da cidade, por volta das 19:30. Nossa viagem se aproximava do final. Faltava mais uma ou duas pernadas em direção ao Oeste, rumo a Nantes. Se não conseguíssimos uma carona direto, talvez uma passando por Le Mans ou Angers.


11) Nunca cante vitória antes do tempo
Tudo muito bom, tudo muito legal, salvo que restava ainda atravessar Paris. Nós sabíamos que era difícil pegar uma carona diretamente para o oeste, mas alguém que atravessasse a cidade não deveria ser tão difícil assim.

Ledo engano, quase todos os carros que chegavam no posto tinham placa parisiense e entrariam na cidade. Não eram raros os casos em que eram dirigidos por moradores das redondezas que utilizavam o posto regularmente. Os poucos carros de regiões que podiam nos interessar estavam cheios ou seus motoristas negavam caronas.

Era extremamente frustrante saber que estávamos tão perto do seu objetivo e não conseguíamos sair do canto. Passamos por uma situação muito desagradável também. Uma moça estacionou um Porsche e poucos minutos depois um homem estacionou um furgão ao lado. Decidimos pedir carona ao cara do furgão. Ele franziu o cenho, virou pra moça e gritou "Ei, senhorita! Esses dois aqui querem pegar uma carona no seu Porsche". Em seguida ele entrou no seu carro com um sorriso de sarcasmo. Muita sacanagem, ficamos numa situação extremamente constrangedora. Não custava nada recusar feito gente.

A saliva estava começando a ficar rala para explicar tantas vezes a nossa história. Ela era interessante e isso facilitava a conversa com os motoristas, mas mesmo assim não conseguíamos nada. Desenhamos três grandes pontos num pedaço de papelão: Nantes, e Munique nas extremidades e Paris ao centro. Uma grande seta ligava Nantes e Munique e escrito sobre ela estava "ontem". Uma seta de Munique a Paris estava assinalada com "hoje". Uma pequena seta pontilhada e ladeada por um ponto de interrogação ligava Paris a Nantes. Sobre todo o conjunto a frase "Amanhã: aula às 08:00". Isso de fato melhorou a comunicação, pois a compreensão da nossa história era quase imediata ao mostrarmos a placa, mas não obtivemos nenhum sucesso.

Esperávamos havia uma hora e meia. Um Volkswagen de um modelo ultrapassado e que não existe no Brasil parou numa das vagas e podia-se ouvir a música que saía de dentro ao longe. Dois rapazes de cabelos raspados saíram. Um deles entrou na loja de conveniência, enquanto o outro nos olhou com um interesse algo sarcástico e começou a nos interrogar, aproveitando para fazer algumas brincadeirinhas sobre nosso infortúnio. Como ele não pareceu ser o tipo que dava caronas e ficou lá rindo da nossa situação, nem tentamos pedir.

Foi então que ele finalmente perguntou de onde vínhamos e eu mostrei nosso cartaz. Ele ficou atônito e o cigarro escorregou para o canto da boca. Ele ficou interessado e admirado. Quando o companheiro dele saiu, ele foi logo contando nossa história. O outro perguntou então se nós tínhamos limitação de tempo e explicamos que tínhamos que chegar até as 08:00 do dia seguinte. Ele disse: "entrem logo no carro que a gente leva vocês pro oeste de Paris". E virando-se para o primeiro: "seu imbecil, você fez eles perderem dois minutos com conversa fiada. Anda logo, acelera". E fomos. O motor roncou alto e o cara passou a segunda marcha um pouco abaixo dos 90 km/h.

Eles costuravam velozmente entre os carros que estavam nas vias periféricas de Paris e não aceitavam que alguém os ultrapassasse. Caso isso acontecesse, eles tomavam a dianteira de novo e ainda fechavam o sujeito. Em boa parte do tempo o ponteiro do velocímetro orbitou em torno de 150, numa via cujo limite era 90. Em uma manobra mais perigosa, o Loïc ficou tão assustado que apertou o meu joelho. Em um determinado momento perguntamos o emprego deles e a resposta foi "desmontamos carros". Isso me pareceu um pouco ilegal e não segui adiante nas perguntas, mas eles continuaram falando. Eles modificavam motores de carro para aumentar a potência e o carro em que estávamos não passava de uma carcaça uma semana antes. Eles nos contaram que o levaram para a Alemanha para testar a melhoria e estavam a 250 km/h quando uma Ferrari encostou e deu sinal de luz pedindo passagem. Pé embaixo, 270 e os sinais de luz continuaram. Por fim eles desistiram e a Ferrari passou voando baixo ao lado.

Perguntamos se não estavamos atrapalhando, mudando o caminho deles. Eles explicaram que não, que tinham apenas saído para comprar cigarros. Às duas da tarde. Perguntamos o que tinha acontecido nessas quase oito horas até o momento em que nos cruzamos. "Minha namorada chamou pra gente ir pro cinema, depois uns amigos nos chamaram pra tomar pastis, depois fomos dar uma volta e resolvemos comprar os cigarros agora". Eles disseram que estavam gostando de levar dois malucos no carro e que a nossa história os divertia muito. Já próximo de chegarmos eles no deram email e telefone e pediram que quando fôssemos para Paris os contactássemos.


Já tenho bastante história para contar para os meus netos, não acha? Mas eles vão demorar muito para nascer ainda. E ainda falta a parte final para contar para você. Você não vai querer perder o desfecho da história, vai? Olha só:

  • Os resultados
  • Anedotas de outras equipes
- Métodos inusitados
- Viagens com romenos
- Fracassos colossais


Você já chegou até aqui, para chegar no fim só falta um fôlego!

Pouce d'Or Parte 2

4) Um enorme coincidência
Última estação de serviço antes Metz. Frio. Chuva. Primeiros sinais de cansaço. Alguns fracassos retumbantes em conseguir carona. Quarenta minutos depois de chegarmos, a surpresa: de um carro recém-chegado descem dois centraliens que também faziam o Pouce d'Or. Eram o Tobias e a Anaëlle, ambos do primeiro ano. Um detalhe muito importante: o Tobias é alemão, estudava em Munique antes de vir para França e era para lá que ele ia na competição.


Fizemos um acordo de que a prioridade das caronas era minha e do Loïc, pois havíamos chegado primeiro. E vieram mais 80 minutos de fracassos retumbantes até que abordamos um cara num grande furgão da Ford com placa alemã. Ele era alemão e falava quase nada de francês, então desistimos e deixamos a vez para o Tobias negociar. E ele conseguiu a carona diretamente para Munique, passando por Strasbourg. O único problema é que só havia lugar para três.

Conversa vai, conversa vem, o alemão decidiu levar os quatro: o Tobias na frente, eu e a Anaëlle sentados atrás e o Loïc jogado no meio das bagagens do homem. Seguimos viagem com ele e não tenho muita coisa para falar a seu respeito, pois eu não entendia nada do que ele falava. E, a propósito, ele falava muito, fosse com o Tobias ou ao celular. A viagem foi cheia de momentos assustadores, pois ele tinha o hábito de gesticular enquanto falava com o Tobias e para isso ele usava as duas mãos. O cúmulo foi quando ele ligou o notebook, colocou-o sobre o painel do carro e acessou a internet. Em todos esses casos a velocidade média era de 115 km/h. Taí a figura:

Enquanto estávamos no carro recebemos uma mensagem da organização dizendo que uma das duplas participantes tinha pego carona com um açougueiro e que após contar a história da competição, o cara decidiu doar como prêmio ao vencedor um presunto de 7 kg.

5) Ponto de retorno: Munique
Chegamos a Munique por volta de 00:45. E então descobri que se Metz estava fria, Munique estava um gelo. A nossa primeira constatação foi que quase todos os bares e boates estavam fechados. Encontramos com os amigos do Tobias num ponto central da cidade e rumamos para a estação de metrô enquanto batíamos algumas fotos. A comunicação foi muito tranquila, pois um deles falava francês muito bem e o outro falava inglês.

Chegamos finalmente na casa deles por volta de 02:00. Além dos dois amigos do Tobias, no seu antigo apartamento agora mora também uma estudante polonesa do programa Erasmus Mundus. Ela não ficou nem um pouco feliz por ter sido surpreendida no meio da noite com a chegada de tanta gente. Sobretudo porque ela usava seus trajes de dormir com os dizeres "I love boys" na frente. Largamos nossas bagagens e fizemos uma pequena pausa para comer, escovar os dentes e tomar uma bela cerveja branca da Bavaria!


6) Quem não se comunica se trumpica.
Havíamos decidido parar em Munique e retornar pela manhã. Embora fosse cedo e pudéssemos avançar ainda mais, achamos prudente reservar mais tempo para a volta do que para a ida, uma vez que não existe lugar para a flexibilidade na volta. É preciso voltar para Nantes e aceitar carona para outro lugar que não esteja na rota não é nada bom. Acordamos às 6:00 moídos de cansaço. Como eu já havia constatado diversas vezes antes, eu fico mais burro quando estou com sono. Eu deixei minhas luvas sobre a cômoda e na hora da saída o Loïc me perguntou se aquelas luvas não eram minhas. Eu respondi categoricamente que não, pois na minha cabeça eu só pensava "eu não tenho luvas, pois o Ceará é quente pra caramba". Minha sanidade só voltou quando estávamos longe, na estação do metrô e quando minhas mão já começavam a apresentar alguns sinais de queimadura por frio.

Pela manhã recebemos uma mensagem da organização, contando que havia uma equipe que chegara à Polônia, a 1678 km de Nantes. Inacreditável. Se eles voltassem a tempo teriam a vitória e o recorde da competição, com mais de 200 km de vantagem em relação ao recorde anterior.

Atravessamos mais uma vez a cidade de metrô e nos posicionamos num semáforo perto de uma das saídas da cidade por volta das 07:15. Na mão, dois cartazes: Ulm, uma cidade próxima, e Frankreich, França em alemão. Fizemos um acordo de cada dupla deveria conseguir sua própria carona, uma vez que a carona a quatro é muito mais difícil. Mantivemos distância para que cada dupla tivesse espaço. Em torno de 08:00 um carro parou quando acenamos. Era um cara entrocado, de aspecto um pouco rude e com um palito de dente na boca. Havia um obstáculo imenso: ele só falava alemão. Através de gestos e uma boa dose de boa vontade eu perguntei se não era possível levar a outra dupla e ele disse que só podia levar dois. Isso me fez desconfiar ainda mais, pensei mil besteiras, pensei como era mais fácil roubar ou matar dois do que quatro. Mais tarde refleti e pensei no lado dele: "é mais fácil ser roubado ou morto por quatro do que por dois".

O problema é que essa reflexão foi bem tardia, já no fim da viagem, e enquanto fizemos o trajeto a cada vez que ele procurava algo na bolsa ou debaixo do banco eu tinha a impressão de que no momento seguinte eu teria uma pistola apontada para a minha cara. Ele havia nos mandado tirar os coletes fluorescentes e quando eu perguntei a razão ele respondeu que tinha algo a ver com a polícia. Saquei um grande pedaço de papelão e desenhei o símbolo de paz e amor para mostrar que éramos pacíficos. Eu só não sabia que aqui na Europa esse símbolo é quase sinônimo de maconheiro. Ele nos perguntou se trazíamos drogas e passamos por alguns momentos tensos até que tudo se apaziguasse.

O expediente do papelão mostrou-se uma forma eficiente de comunicação. "Conversamos" com ele desse modo durante todo o trajeto. Tentávamos explicar que queríamos descer na última estação de serviço antes de Ulm, que não queríamos entrar na cidade. Mas ele não entendia nem "estação de serviço" nem "última". Usei toda minha veia artística para me fazer entender. Os desenhos eram bastante toscos, mas eram o suficiente para mostrar o que queríamos, o que estávamos fazendo e até para conversar amenidades. Complicado foi explicar o que diabo estávamos fazendo na Alemanha e por que tínhamos pressa para chegar. O fluxo de palavras, desenhos e idéias que eu usei para explicar foi o seguinte: "Schummacher, Rosberg, Heidfeld", "Fórmula 1", "corrida", "carona" e "corrida de caronas".


Chegamos no último posto antes de Ulm, tiramos a tradicional foto e entramos na loja de conveniência. Descobri por fim que nosso motorista era um cara legal: ele pagou um café pra gente e continou conversando. Enquanto estávamos na mesa um carro chega e duas pessoas com imensas mochilas descem. Tobias e Anaëlle. De novo. Inacreditável como nos encontrávamos ao acaso pela segunda vez. O Tobias conversou com nosso motorista e esclareceu qualquer mal-entendido que possa ter acontecido.


7) Um pequeno momento de disgressão
Se você não parou de ler até agora, você deve estar cansado. Levante, ande um pouco. Suas pernas vão agradecer e você pode até mesmo evitar uma trombose. Se o seu problema é tédio, por que não jogar sudoku ou palavras cruzadas?

Agora que você está disposto de novo, voltemos à aventura!


8) Um motorista interessante
Percebemos de imediato que as estações de serviço na Alemanha são dispostas de maneira diferente. Na entrada fica o posto de combustível e a loja de conveniência. Na saída fica o restaurante/lanchonete. Essa configuração torna o lugar bastante longo, diferente das estações de serviço francesas, que aglutinam tudo numa coisa só. Renovamos o acordo de independência das duplas. Deixamos os nosso camaradas no posto de gasolina e rumamos para o bistrô. O lugar era muito simpático, ficava na beira de um lago e passava uma impressão bucólica. Nas margens do lago, próximo de algumas mesas e bancos rústicos, um senhor fumava e tomava vagarosamente seu café. Decidimos abordá-lo, mas apenas depois que ele terminasse seu momento de relaxamento.

Esperamos uma dezena de minutos e vez por outra o observávamos para saber se ele já tinha acabado. Quando ele finalmente sorveu o último gole, jogou a bituca fora e abriu a porta do carro eu o abordei em inglês:

- Bom dia, senhor. Com licença...
- Vocês podem vir comigo.

E ele falou essa última frase já afastando as coisas no banco de trás para liberar espaço para nós. Aproveitei-me da boa vontade do homem e perguntei se ele podia levar uma outra dupla. Ele consentiu desde que não nos importássemos com o aperto. Chamamos os nossos colegas e entramos no carro.

Algumas informações: ele era grego, mas morava havia vinte anos na Alemanha, onde trabalhava como fisioterapeuta e osteopata. Tinha um semblante tranquilo e um certo ar de quem já fora hippie na juventude. Acredito que ele se identificou conosco, pois ele contou algumas de suas anedotas de quando viajou através de caronas. A mais interessante foi uma ocasião em que ele ficou preso um dia e meio numa estação de serviço sem conseguir caronas, quando finalmente a polícia foi lá e, pasme, lhe ofereceu a carona.


O carro dele era cheio de cacarecos: estatuetas, amuletos, bandeiras e até uma vaquinha de pelúcia pendurada no teto. Simpatizei logo com o cara. Em um determinado momento eu vi uma placa na estrada com os dizeres "Legoland #### ### ###". O resto era alemão e eu não entendi. Perguntei para o Tobias se havia uma Legolândia na Alemanha e quem respondeu foi o nosso motorista, adicionando à sua resposta uma detalhada explicação do que era a Legolândia. Eu retruquei:

- Ah, eu sei o que é a Legolandia. Desde pequeno eu quero visitar. Se hoje eu estudo engenharia é porque eu brinquei muito com Lego na minha infância.
- Pois eu trabalhei numa fábrica da Lego quando tinha dezenove anos. Fabricava as pecinhas. Era um trabalho de verão. Em que ano você nasceu?
- Em 1987.
- Pode ser que algumas das suas peças de lego tenham sido fabricados por mim.

Chegamos finalmente na última estação de serviço antes da cidade onde ele ficaria, e de cujo nome agora não me lembro. Tiramos a foto ao lado do seu carro azul e de forma que o adesivo "Smile" aparecesse. No meu colete ele escreveu em grego:

Boa Sorte

Stathis


Gostou do que leu? Conseguiu ler as duas primeiras partes de uma vez só? Que tal ler a terceira também? Nela você verá:
  • Um gostinho de derrota
  • Acima de tudo e mais uma vez a comunicação
  • Algumas impressões sobre as auto-estradas alemãs
  • Um novo gosto de derrota e um grupo inusitado
  • "Nunca cante vitória antes do tempo"
  • Desmanche de carros e 150 km/h na periferia de Paris
Mas não vá cansar sua vista. Levante, beba água. Ficar sentado tanto tempo não faz bem para a sua saúde. Mas não deixe de ver a outra metade da aventura!


Pouce d'Or Parte 1

Essa postagem é tão grande, mas tão grande, que merece um índice. Ok, exagerei. Mas aqui vão algumas expressões chave para dar uma idéia do que vem por aí.

* Uma tradição aventureira anual em sua sétima edição.
* Quase cinquenta duplas de aventureiros/malucos/perdedores
* Um saco de jujubas e um radical alimentar
* Uma banda de eletrofunk e o porte de substâncias psicotrópicas


Esse é o post mais longo da história do meu blog. Eu o havia publicado em uma lapada só. Resultado: ninguém leu. Uma pena, pois ele é muito interessante. Foi por isso que eu o fracionei em quatro. Espero que isso ajude!


1) Introdução

Pouce d'Or
significa literalmente polegar de ouro e é uma referência ao clássico gesto que as pessoas fazem para pegar carona. Trata-se de uma tradição da escola, uma competição que acontece anualmente desde 2003. O objetivo é viajar em dupla o mais longe possível em um fim de semana apenas através de caronas. Duplas de garotas são proibidas, pois fica muito mais fácil conseguir caronas e, além disso, pode ser perigoso. A pontuação é o número de quilômetros rodados tomando como referência o caminho mais curto possível, mais bônus, menos penalidades. Os bônus podem ser obtidos através de várias formas e eu me furto a escrever apenas as que eu me lembro e que são as mais engraçadas: ficar com o(a) motorista, pegar carona com um cego, pegar carona em um carro de luxo/esporte, pegar carona com um travesti. A penalidade é a perda de 100 km de percurso a cada hora de atraso, a contar das 08:00 da segunda feira, horário de início das aulas. A dupla é desclassificada se utilizar-se de transportes pagos (trem, avião, ônibus) para se deslocar entre as cidades ou caso se separe. O uso de coletes fluorescentes é obrigatório para as duplas que estiverem na estrada à noite e a permanência nas proximidades da barreira de segurança é fortemente desestimulada. Um estudo comprovou que a expectativa de vida de alguém que tenta pegar carona atrás da barreira é de vinte minutos. Para aqueles que tentarem pegar carona do outro lado da barreirra, má notícia: sete minutos de expectativa de vida.

A competição de 2009 bateu alguns recordes: foram 47 duplas inscritas, contra 30 no ano passado. Não consigo imaginar um bom motivo para tanta gente. Talvez tenha sido a vontade de bater o recorde estabelecido no ano passado pela dupla da namorada do meu padrinho: Lenz na Áustria. Eles tiveram a sorte de encontrar um carro com romenos voltando para casa. Eles atravessaram quase toda a Europa Ocidental em apenas um carro e a uma velocidade média de 150 km/h em cada percurso. Conseguiram voltar na noite de domingo e gozaram de uma boa noite de sono.

Eu resolvi participar do evento assim que soube de sua existência e de suas particularidades, na primeira semana de aula. Escolhi minha dupla já naquela época. Ele se chama Loïc, é francês, mora com um brasileiro e um outro francês e certamente tem um parafuso a menos. Acho que foi por este motivo que eu o convidei para ser minha dupla. Compramos o material para a viagem: uma lanterna, um mapa, coletes fluorescentes, frutas secas, compota, biscoitos, isotônicos, energéticos e bombons para oferecer para os motoristas. Nosso objetivo inicial era cruzar a fronteira da Polônia e voltar.


2) A Largada

A largada foi dada às 09:00 do sábado. O nosso plano era tentar pegar uma carona na periferia de Nantes com destino a Paris. Infelizmente muitas outras duplas tiveram a idéia de pegar carona no mesmo lugar e formamos uma longa fila de malucos com coletes fluorescentes ao longo da rua. Nós mostrávamos um cartaz com os dizeres "Paris" de um lado e "Angers/Le Mans" no outro. Além disso, exibíamos um saco de uma espécie de jujuba para oferecer aos motoristas.

De maneira geral, as duplas mistas conseguiam carona primeiro. Nós começamos a ficar cansados e o saco de jujuba rapidamente ficou pela metade. Apesar disso, ainda conseguíamos interagir com os motoristas e a maioria deles, ainda que não nos dessem carona, se divertiam com a cena, sorriam e acenavam. Próximo das 10:30 um carro finalmente parou para nós. Era um senhor por volta dos cinquenta anos que ia para Paris. Assim que entramos oferecemos as jujubas e recebemos um gélido "Eu não como isso. Tem açúcar demais".

Conversamos, explicamos o motivo de estarmos ali e a louca jornada que fazíamos. Ele perguntava muitas coisas sobre o Brasil e a conversa desenrolava-se de uma maneira bastante previsível, eu diria. Ele nos contou que era técnico em eletrônica e que trabalhava em uma fábrica de equipamentos de radioterapia. Quando o assunto câncer foi citado a conversa saiu completamente das veredas da previsibilidade.

Ele nos perguntou "Vocês conhecem o cloreto de magnésio?". Bem, de certa forma nós conhecíamos, sabíamos que era um sal, conhecíamos os elementos químicos componentes, mas não tínhamos muitas noções do seu uso. Ele nos disse que o magnésio é fundamental para a manutenção celular e que uma dieta fraca em cloreto de magnésio pode ser uma das causas para o câncer.

Até aí tudo bem, mas o que veio em seguida já começou a ficar mais interessante. Ele nos disse também que alguém que tenha uma dieta rica em cloreto de magnésio é menos propenso a sofrer os efeitos de uma gripe e que a gripe A, a gripe suína e a gripe aviária são produtos da dieta deficiente da maioria da população. Segundo ele, o cloreto de magnésio cura a poliomielite, a meningite, previne cãimbras e, como não poderia deixar de ser, combate a impotência sexual.

Durante as quase quatro horas em que estivemos com ele ouvimos um discurso proselitista sobre o cloreto de magnésio. Ele diz que os seus benefícios são pouco conhecidos por causa do lobby da indústria farmacêutica, que faliria caso as pessoas os conhecessem. Ele também falou de algumas de suas práticas alimentares, como jejuns de uma semana e abstinência de leites e derivados, bem como outras práticas menos comuns como medir regularmente o ph da urina para saber o estado do organismo. Ele afirmava que era preciso encontrar um equilíbrio, que se alimentar bem não bastava, era preciso ser feliz. E se o fato de restringir a dieta fosse uma fonte de estresse, então era preciso encontrar um ponto de equilíbrio entre a boa alimentação e o prazer de viver. No fim das contas ele nos deu um envelope do bendito sal para experimentar.

Já próximo da periferia de Paris ele nos mostrou uma outra faceta radical, desta vez política. Ele acreditava que a descolonização francesa havia sido um erro e que a Argélia deveria continuar como colônia francesa. Seus argumentos eram calcados unicamente numa visão utilitarista metropolitana e os interesses das colônias não pareciam ter nenhuma importância.

Nós havíamos pedido para que eles nos deixasse numa estação de serviço antes de entrarmos em Paris, se possível no anel viário intermediário. Isso se deve ao fato de ser muito mais difícil pegar caronas dentro das cidades. O homem fez a gentileza de nos deixar no lado oeste da cidade, quando seu destino era o leste, e tornou muito mais fácil pegarmos uma carona conveniente, pois achar alguém nas proximidades de Paris que siga direto é muito difícil, a maioria dos motoristas entram na cidade. Segue uma foto com o cara e o envelope de cloreto de magnésio. Eu me toquei na hora em que a câmera disparou que o meu cartaz estava de cabeça pra baixo. A propósito: está escrito "loin", que significa longe.



3) O trecho Paris-Metz
Como eu disse antes, nosso destino inicialmente era a Polônia. O melhor caminho era, portanto, seguir de Paris rumo a fronteira nordeste, com a Bélgica, e então Alemanha e Polônia. No entanto, dez minutos depois de chegarmos na estação de serviço encontramos uma van e um grupo de quatro jovens. Nós os abordamos e perguntamos para onde iam. Eles responderam que iam para Metz, uma cidade a leste de Paris e quase na fronteira com a Alemanha. Como quem é flexível não quebra, resolvemos mudar de planos e aceitar uma carona. Novo objetivo: Praga, capital da República Tcheca.

Antes mesmo de embarcar descobrimos que eles eram uma banda de eletrofunk e música experimental chamada Gable e que estava em tournée pela França. A banda era composta por três músicos e um engenheiro de som e ouvimos um pouco da música deles enquanto estavámos no carro. Era algo meio vanguardista, meio experimental e muito legal.

Um incoveniente é que um dos integrantes resolveu fumar dentro do carro e com as janelas fechadas, o que foi bastante desagradável. Nós conversamos razoavelmente com eles, mas também passamos um bom tempo conversando entre nós, enquanto eles discutiam entre eles. Na saída de um pedágio em Reims fomo parados pela polícia. Segue o diálogo:

- Bom dia. Para onde vocês vão?
- Bom dia. Para Metz.
- E o que vocês vão fazer lá.
- Somos uma banda, vamos fazer um show.
- E vocês têm algum material ilegal com vocês.
- Não, mas temos dois caroneiros ali atrás.
(Uma pausa para o guarda nos observar)
- Ok. Vocês podem seguir.

Achei na hora que o fato de nos "dedurar" foi meio que para dizer "nós não temos nada de ilegal, mas eu não sei quanto a eles". Ledo engano, quinze minutos mais tarde a única mulher do grupo acendeu o cachimbo da paz.

Chegamos em Metz às 17:00 sem maiores problemas. Pedi um autógrafo da banda no meu colete e brinquei dizendo que isso ia valer muito quando eles fossem famosos. Eles nos deram seus emais e pediram notícias da nossa aventura. "Boa viagem." "Bom show". "Boa estrada". Esperávamos que tudo corresse bem e acredito que estávamos certos. Aqui vai uma foto com deles:




E aí, começamos bem? O texto tá interessante? Pois ainda não acabou. Você acabou de ler a narrativa do primeiro quarto da viagem. Que tal dar uma espiada no que rola na sequência?
  • Uma enorme coincidência
  • Duas duplas, um furgão e um alemão que dirige sem as mãos na direção
  • Três horas no nosso destino final
  • Comunicação via desenhos rupestres
  • A mesma enorme coincidência. De novo
  • Um grego, a Legolândia e uma pequena pitada de nostalgia

Interessado? Por que não continuar lendo?

Apartamentos pequenos

Hoje vou fazer um pequeno jabá, mas muito merecido. O Augusto Campos, autor do blog www.efetividade.net, recentemente publicou um texto sobre algumas dicas de organização para apartamentos pequenos. O texto é muito bom, o que é o padrão geral do seu blog, e é útil sobretudo para o segundo ano em Nantes, no qual temos que alugar apartamentos muitas vezes não mobilhados.

Recomendo bastante esse site, não só para o assunto em questão. Ele foi uma das minhas fontes de referência para o processo de seleção para o Programa Duplo Diploma e continua sendo uma referência para organização pessoal.

Irmãos Landreau

Fatos:

1) Nantes é a capital não oficial da Bretanha.
2) A Bretanha é uma região francesa cujo povo tem origens celtas.
3) É a bilhonésima vez que eu falo isso.

Postas assertivas anteriores, não chega a ser surpreendente que Nantes tenha servido como palco para o festival Celtomania, que aconteceu durante as férias de Toussaints há longíquas duas semanas atrás quando o autor deste blog era mais assíduo. O festival consistia em diversas manifestações culturais da cultura bretã, o que incluía cluinária, dança e música.

Após voltar de Florença recebi um email com a feliz notícia de que o meu camarada e ex-companheiro de banda (Os Musgos) Décio viria me visitar nos três últimos dias das férias. Infelizmente estava lotado de trabalhos e não fui um bom cicerone, mas o convidei para assistir uma apresentação musical do festival que havia sido noticiada no jornal.

O que mais me chamou atenção na verdade foi o intrumento utilizado , posto que eu não conhecia os músicos: um Chapman Stick. Eu já o conhecia há algum tempo, mas nunca havia tido a oportunidade de ver uma apresentação ao vivo. O instrumento é, de maneira bastante simplificada, uma mescla de baixo e guitarra tocado de maneira semelhante a um teclado ou piano. As cordas são percurtidas pelos dedos sobre o braço do instrumento e uma mão é utilizada para fazer a melodia e a outra para fazer o acompanhamento. Não vou entrar em tecnicimos, pois eu posso passar muito, muito tempo falando disso e vou ser efadonho.

Ok, mas o instrumento não toca sozinho, correto? De fato, não toca. E o homem por trás da máquina era Youenn Landreau. Músico reputado como um dos mestres europeus do instrumento e respeitado no cenário do jazz.


Youenn estava acompanhado de seu irmão Fanch, que toca violino. Embora toque muito bem as músicas tradicionais próprias do seu instrumento, ele é conhecido pelas músicas de origem celta e por tocar o fiddle irlandês, que é um outro tipo de instrumento.


A apresentação ocorreu numa das mediatecas de Nantes, bem próximo aqui de casa. O lugar era um auditório pequeno e eu descobri no momento em que cheguei que o show serviria como abertura de uma exposição sobre o Chapman Stick, pois as paredes estavam cheias de cartazes e havia dois instrumentos expostos.

Não havia mais cadeiras, então terminamos sentando no chão. Um preço nada caro para assistir à apresentação que se seguiu. Os irmãos Landreu tocaram predominantemente um repertório calcado na música celta, mas houve espaço para o jazz e outros gêneros. Em um intervalo da apresentação, Youenn discorreu sobre o instrumento, sua história, sua construção, suas técnicas e os músicos que o dominam. Ele resolveu fazer variações sobre uma música para demonstrar as diferentes técnicas que podem ser utilizadas no instrumento. A música: Wave de Tom Jobim e Vinícius de Moraes. Fantástico.

Ao fim da apresentação, uma pequena refeição com doces bretões, sucos industrializados e Breizh Cola, a versão bretã da Coca-Cola. Uma pequena observação: Breizh é Bretanha em... bretão, claro! Durante esse tempo Youenn conversava com os presentes e foi muito antencioso com todos. Aproveitamos para falar sobre a bossa que ele tocou e nos identificamos como brasileiros . Depois disso ele disse que admira muito a música brasileira (convenhamos: é impossível não admirar a BOA música brasileira) e que ultimamente tem tocado muitas músicas do Djavan. Excelente saber que nossos músicos gozam de boa reputação no exterior.