Florença: agora sim a viagem.

A partida

Partimos na tarde da sexta-feira, após uma manhã de aula que se seguiu à soirée da semana cultural. A viagem foi feita de ônibus e durou vinte horas. Infelizmente, como eu tenho observado ser a regra nas viagens organizadas pela escola, os organizadores têm grande interesse em não nos deixar dormir. Sempre havia algum membro da organização com o microfone na mão desenvolvendo um tema de pourrissage (encheção de saco). Eu não costumo dormir em ônibus e aviões, simplesmente não consigo. Mas a fadiga era extrema e eu consegui dormir durante umas cinco horas da viagem.

O grupo era um pouco heterogêneo. Uma boa quantidade de EI1, sendo eu, um japonês e um marroquino os únicos estrangeiros. O grupo de EI2 era formado basicamente pelos membros do BDE que organizavam a viagem, dos quais um terço eram estrangeiros. Havia outros EI2 que não eram da organização e levaram suas namoradas, que não estudam na escola. Havia também um casal de tunisianos da École du Bois (Escola da Madeira) que souberam da viagem através de um contato na Centrale. O tunisiano tocava violino e em uma das paradas ele nos agraciou com uma sessão rápida composta basicamente de músicas árabes, que têm uma estrutura e uma sonoridade típicas e completamente diferentes da música ocidental. E mais: a maior parte dos instrumentos ocidentais são incapazes de alcançar as notas usadas na música árabe.

Chegamos em Florença (Firenze para os italianos) na manhã de sábado e nos instalamos em um albergue, que eu descobri depois funcionar num prédio que servia como convento. As paredes grossas desse tipo de construção ajudaram no conforto térmico, mas de certa forma nem foram tão úteis, pois o clima estava quente e parecia que o outono tinha esquecido de começar na cidade.

A tarde de sábado

A tarde foi consagrada basicamente a bater perna e conhecer a cidade. Começamos com um passeio na borda do Rio Arno e pela Ponte Vecchio. Passamos brevemente pela Galeria degli Uffizi antes de chegar na Piazza de la Signoria, onde se localiza o Palazzo Vecchio. Na praça entramos num café e tivemos oportunidade de saber o que é um verdadeiro café espresso italiano. Seguimos pelas ruas estreitas e movimentadas da cidade, sempre atulhadas de pedestres, pedintes e vez por outra um carro que forçava passagem entre o mar de gente que ali estava. Muito mais comuns do que os carros são as lambretas, inclusive algumas das clássicas Vespas, e que podem ser vistas em toda a cidade. Passamos por algumas igrejas e chegamos finalmente à Catedral Santa Maria del Fiore, muito mais conhecida como il Duomo. Por fim, voltamos ao albergue passando pelo Palazzo Pitti.


Passamos por esses pontos turísticos várias vezes e agora me furto a falar um pouco mais detalhadamente sobre cada um deles.

A Ponte Vecchio é uma das várias pontes que cruzam o rio, no entanto ela é facilmente distinguível das outras por causa quantidade de lojas que parecem se equilibrar debilmente sobre sua estrutura. Datada da época da Roma antiga, a ponte abriga sobre seu arco central uma estátua. Existe uma tradição que diz que ao colocar um cadeado nas grades ao redor da estátua eterniza-se o elo entre dois amantes. Embora a prática seja proibida e punida com uma multa de 50€ paras os que forem pegos em flagrante, cadeados não faltam no gradeamento.

A Galeria degli Uffizi é um grande prédio em formato de U incialmente projetado para abrigar a sede do poder judiciário da cidade. Ao longo do tempo e sob a égide da família Médici, o palácio passou a abrigar obras de arte, o que deu início à sua vocação atual: museu de obras clássicas renascentistas. Séculos após a sua construção foram adicionadas às colunatas do átrio estátuas de artistas italianos célebres. Visitamos o museu da galeria na tarde de domingo.

O Palazzo Vecchio foi construído incialmente para ser a sede do governo e residência dos governantes. Ao longo dos anos o palácio sofreu sucessivas reformas que descaracterizaram vagamente seu aspecto original, sobretudo a parte posterior. Embora hoje a maior parte do seu espaço abrigue um museu, algumas instâncias governamentais ainda funcionam lá dentro. Na sua frente foi colocada a célebre estátua de Davi esculpida por Michelangelo e que foi substituída por uma cópia dado o seu valor histórico. Visitamos o museu do palácio durante a tarde de sábado.

A Catedral é sem dúvida a atração que mais me aturdiu. É incrível a sensação de ver com os próprios olhos algo que até então só parecia existir nos livros de história. Além disso, as dimensões da catedral são assustadoras e o preciosismos das fachadas; esculpidas em mármore branco, vermelho e verde; são impressionantes. Tanto trabalho demorou seis séculos para ser completamente concluído. Entramos na nave principal apenas na segunda-feira e as naves laterais, juntamente com o altar, estavam interditadas para o público.

O Palazzo Pitti foi comprado pela família Médici para servir de residência aos Duques de Florência. Um dos motivos era que o Palazzo Vecchio não tem jardins e isso incomodava a duquesa. Hoje, além dos estonteantes jardins, o plácio abriga diversos museus. Tivemos a oportunidade de visitar no domingo o Museu da Prata e a Galeria do Traje.

Algumas coisas eu pude observar logo nesse começo da viagem e em geral não foram coisas boas. O Rio Arno é sujo e as margens são bem feias para um rio que tem um valor estético e histórico tão grande. O trânsito em Florença é louco. Os motoristas não respeitam faixa de pedestre e os pedestres invadem a rua. Me senti um pouco no Brasil. A cidade é suja. Não sei se isso se deve aos moradores ou aos turistas, mas não falta lixo no chão nem pichações pela cidade.

Por outro lado, observei uma coisa muito interessante. A cidade é uma Babel e é possível escutar quase todas as grandes línguas européias antes de se andar vinte metros. Eu entendia quase tudo que era dito em inglês, português, espanhol, francês e italiano. E apesar de tudo isso, eu descobri que, assim como aconteceu em relação ao inglês, eu sou agora incapaz de falar italiano. O francês sobrepujou as outras duas línguas na área do meu cérebro dedicada a línguas etrangeiras.



A noite de sábado

Terminamos nosso bate-perna mortos de fome e resolvemos comer uma verdadeira pizza italiana no jantar. Primeira constatação: não existe lugar onde se possa comer bem e barato por lá. Segunda constatação: os italianos são muito mais sacanas que os brasileiros. Dou um conselho para aqueles que espumam de raiva com os 10% de serviço que são cobrados no Brasil: não visitem Florença, ou levem suas marmitas. Além da taxa de serviço, que pode ser fixa ou variar entre 5 e 10%, todos os restaurantes cobram taxas pelo uso das cobertas, ou seja, loouças e talheres. Havia restaurantes que anunciavam taxa zero de cobertas, mas cobravam a taxa de serviço e vice-versa. Para os franceses a experiência foi ainda pior. Na França é possível pedir gratuitamente uma garrafa de água para acompanhar a refeição, enquanto na Itália é preciso comprar água mineral. O problema é que a água mineral deles tem um status quase de vinho. Compramos uma que vinha em garrafa de vidro e que custou quatro euros por 920 ml.

Depois disso fomos visitar os bares da região e tivemos novas decepções. Todos os bares impunham consumação obrigatória e eram super caros. Não foi uma noite particularmente divertida, pois ficamos andando de bar em bar e gastando desnecessariamente.



O dia de domingo

No domingo fomos ao Palácio Pitti. O ingresso para visitar todas as atrações era de 7 euros para estudantes euroupeus e 14 euros para estudantes de outras nacionalidades. Paguei os sete euros na boa e velha estratégia de comprar meia em cinema, que já não funciona mais no Brasil, mas para a qual os europeus não estão ainda preparados.

Visitamos a Galeria do Traje, um museu de roupas, e em seguida fizemos um pequeno passeio pelos jardins do palácio. Foi então que a tragédia aconteceu: após tirar uma foto eu desci um pequeno barranco e não observei que havia um arame estendido próximo ao chão para impedir a passagem. Quando percebi já estava muito perto e com muita velocidade, tropecei e caí com a câmera na mão, objetiva contra o solo. Adeus.

Isso estragou meu humor e, consequentemente, meu dia. Nós visitamos o Museu da Prata, mas confesso que eu tava tão chateado que dei pouca atenção a tudo o que vi por lá. Mais tarde, no entanto, enquanto visitava a Galeria dos Ofícios meu humor já havia melhorado consideravelmente, mas eram minhas pernas que não aguentavam mais tantas escadas e galerias.


A noite de domingo

Bares, bares e bares? Sim, mas não para mim. Meu bolso e minha paciência me imploraram para ficar no albergue. Terminei a noite jogando Tarot, um jogo de carta muito jogado pelos franceses, com dois franceses e suas namoradas. Foi divertido, aprendi algo novo e fiz novos amigos. Além disso, não paguei quatro euros por um copo de gelo com sprite só para garantir um lugar num bar barulhento onde eu não entenderia 20% da conversa.


A manhã e um pedaço da tarde de segunda

Programa light. Andamos um pouco, fomos até a praça Piazzale Michelangelo, um local mais afastado de onde é possível ter uma uma vista panorâmica da cidade de tirar o fôlego.

Em seguida visitamos o interior da Catedral. Gostaria muito de ter subido ao alto da cúpula, mas não subi. Fosse pelo preço ou pela quantidade de escadas a subir. Minhas pernas gritavam à simples menção de um degrau.

Pela tarde visitamos o mercado da cidade, onde encontrei uma lojinha especializada em queijo e embutidos com dois suvenires brasileiros (um chaveiro do Grêmio pendurado num pernil e uma plaquinha do Rio de Janeiro pendurada num grande queijo). Conversei brevemente com os dois vendedores, que eram bastante entusiastas do Brasil. Um deles já havia visistado Natal e Rio de Janeiro e o outro possui um sítio no Ceará. Verdade seja dita, eles não eram propriamente entusiastas da cultura brasileira, mas da bunda das brasileiras, evidentemente. Mantivemos um breve diálogo em "portutiano" e fico feliz que meus camaradas franceses não tenham entendido nada do que eles falaram, pois eles começaram a comparar as diferenças entre a matéria de interesse deles nas francesas e nas brasileiras.

Um deles fez até um teste para verificar minha brasilidade:

- É pau, é pedra...?
- É o fim do caminho!
- É um resto de toco...?
- É um pouco sozinho.
- Brasiliano!!!



O retorno

O retorno foi marcado por mais uma pequena sessão de pourrissage no início, mas depois se acalmou e eu consegui dormir um pouco. Cheguei em casa morto e ainda não dormi e mal comi. Mas a vontade de fazer esse post ainda hoje me fez vir até o computador e escrevê-lo. Saldo? Positivo, é claro!

Florença: Preâmbulos

Semana atípica, acontecimento atípicos e um começo extremamente atípico para este post, mas que se faz necessário para que vocês entendam como eu fui parar na Itália nas férias em que eu intencionava passar aqui e fazer (quase) nada.

O começo

Tudo começou de fato quando eu cheguei aqui. Isso pode parecer meio determinístico, mas o meu comportamento durante o começo do ano letivo aqui foi decisivo para essa viagem. Por quê? Veremos. Que comportamento? Tentar conhecer o máximo de pessoas possível, guardar o nome delas, ser simpático, exercer a política da boa vizinhança e sobretudo não me limitar a um grupo restrito de amigos. Graças a isso eu conheço muita gente. Tenho na cabeça o nome de cerca de cem pessoas da turma, que tem 347 pessoas. Falo com boa parte delas e ainda com outros cujo nome eu não sei.


A semana

Como eu disse, foi uma semana atípica. Foi a também semana cultural (Semaine Q) da escola, organizada pelo Bureau des Arts (BDA) e participei como voluntário na equipe de apoio. Também foi uma semana pesada pois eu deveria entregar um trabalho de automatismos (não, aqui a vida não é só festa) na sexta feira e eu mal tinha começado, pois não compreendia metade da matéria. O meu tempo estava milimetricamente repartido de forma que eu pudesse assistir a alguns eventos da semana cultural, ajudar na organização e fazer meu trabalho para na sexta feira começar o meu dolce far niente devido ao fracasso dos meus planos de ir a Paris durante as férias.

Foi então que eu soube (de véspera, como é padrão) que o professor da UFC responsável pelo programa nos visitaria em Nantes e os meus planos foram pelos ares. Eu não tinha nenhum tempo vago e a visita tomou o tempo da organização da semana e da participação em alguns eventos, o que provocou a ira do responsável pela equipe de apoio. Uma parte do tempo dedicado a fazer o trabalho também ficou comprometida. A fadiga começou a bater um pouco e um colega meu perguntou o que estava acontecendo.

- Tô com dificuldade em fazer o meu trabalho de AUTOM. Não entendo bem a matéria e tô meio sem tempo.
- Se você quiser eu posso emprestar meu trabalho para você conferir as repostas.

Sei não. Na minha terra "conferir as respostas" não está muito longe de "copiar o trabalho". O mais surpreendente é que mais dois episódios de solidariedade espontânea aconteceram na semana. Segue o próximo.

- Vai passar as férias onde, cara?
- Eu ia para Paris, mas não deu certo. Os meus amigos lá iam viajar e eu terminei sem ter onde ficar.
- Poxa, cara. Eu sou de Paris. Se quiser ir lá pra casa pode vir que é tranquilo.

Alguém pode zoar, dizer que ele tinha segundas intenções, mas ele não parece fazer o tipo. O terceiro episódio foi mais surpreendente...

- Angelo, você tá interessado em integrar uma chapa para concorrer ao BDE?
- Não, cara... Tenho mais interesse no BDA e acho que não tenho o perfil para ser do BDE.
- Por que tu acha que não tem o perfil?
- Sei lá... Acho que pra ser do BDE tem que ser um tipo meio popular e eu não sou assim.
- Mas você é um dos estrangeiros mais populares.
- Mesmo assim acho que não tenho perfil.
- Eu acho que você tem o perfil. E por isso eu te coloquei na minha chapa.
- O QUÊ?!?
Não sei até onde esses episódios são pena, popularidade ou interesse por ter um bichinho estrangeiro exótico numa chapa para chamar atenção. A questão é que tudo isso adveio da minha política de relacionamentos.


O desfecho

Na quinta feira pela manhã aconteceu um concurso de ditado, um evento da semana cultural. Um dos prêmios era uma viagem para Florença. A viagem era organizada pelo BDE e já estava sendo propagandeada havia um bom tempo, mas não me interessava por causa do preço (139€). Não participei do concurso por falta de interesse e também por acreditar que não seria um estrangeiro que ganharia um concurso de ditado.

Durante a tarde de quinta eu me engagei na montagem do palco e na decoração do hall onde aconteceria a soirée da semana cultural. Foi então que aconteceu o último episódio, dessa vez por parte da minha vizinha.

- Angelo, eu fui a primeira colocada no concurso de ditado e ganhei uma viagem para Florença, mas eu já havia comprado uma pra mim. Estou procurando alguém que ia ficar na residência durante as férias para comprar pela metade do preço. Lembrei que você vai ficar em Nantes. Te interessa?
- Deixa eu pensar um pouco...

Três dias na Itália por 70€... Não foi preciso pensar muito. Aceitei. Depois da soirée eu terminei meu trabalho de automatismos (sem copiar) e arrumei minha mochila na madrugada alta para partir no dia seguinte. Os detalhes da viagem estão no post acima.

Meu Sax!

Postagem mega-atrasada. Mil desculpas (outra vez). No domingo, dia 18 de outubro, a Fanfrale fez hyenage em Pornic. Dessa vez eu participei ativamente, ou seja, eu fingi que tocava sax! A grande diferença é que dessa vez era o MEU sax.

Ok. O "meu" sax. Explico-me: partimos de trem pela manhã num espaço do vagão reservado para a Fanfrale. Cada integrante levava o que podia na mão. Na ocasião eu levava o sax emprestado do meu veterano e mais outro cacareco qualquer. Estava bastante ansioso, pois o presidente da Fanfrale disse que havia comprado um sax novo. Evidentemente ele não me pertence, mas está sob minha custódia já que todos os outros saxofonistas já têm seus instrumentos. Novinho, novinho, tem até um par de luvas para evitar a degradação do acabamento pelo suor das mãos. =P

A apresentação ocorreu tranquilamente, salvo pelo fato de haver pouca gente assistindo. No final das contas conseguimos pouco dinheiro, que pagou apenas as passagens e a bebida que levamos.

Picolé de rapadura

Previsão do tempo desta semana. Mínimo de 6º na segunda, na terça e na quarta. E para hoje, quinta-feira, 7º. Desde quando eu aprendi como a previsão do tempo é feita eu já não boto muita fé nos valores previsto. Para saber mais procurem sobre "modelo estocástico de ordem zero para previsão do tempo". Trocando em miúdos isso significa: "Hoje fez sol, amanhã fará sol. Hoje chuveu, amanhã choverá". Fabuloso, não acham?

E hoje não foi diferente. Tinha um três no termômetro, seguido de uma bolinha (º). Não fui eu que vi, alguém que me contou. Mas nem precisava, a caminhada até a sala de aula foi enregelante e a névoa que saía do meu nariz a cada expiração já me dava uma idéia da temperatura.

Que falta me faz a presença de um zero entre o três e a bolinha! Só um zerinho...



P.S.: Sempre tem um sádico pra me dizer "vai ficar pior". Não preciso que vocês me lembrem disso.

Enfim, a Bretanha...

Começo de conversa (ou de postagem): o que é a Bretanha? É uma região no noroeste da França que é conhecida pelo mal-tempo, as mulheres feias, os homens beberrões e a tendência separatista. Isso é que você vai ouvir dos franceses e, evidentemente, é uma grande mentira, ou talvez apenas uma meia verdade...

Alguns fatos sobre a Bretanha que explicam um pouco essa fama: o povo bretão tem origem comum com os irlandeses e uma parte dos ingleses, povos do oeste da Grã-Bretanha. A origem é o povo celta, que tem uma cultura riquíssima e cujos símbolos são bem conhecidos até hoje, embora poucos procurem conhecer seus significados. Quando agrega-se um povo como esse a um país cujos outros habitantes partilham de uma cultura completamente diferente o que acontece? Movimentos separatistas e, voilà, a maior razão para a imensa quantidade de piadas sobre os bretões. A Bretanha está para a França como o Rio Grande do Sul está para o Brasil, mas sem a fama de ser terra de homossexuais.

Acontece que desde antes de chegar na França eu queria conhecer a Bretanha. A razão é que eu sou louco por faróis e marinharia e os faróis mais bonitos da França estão lá. Na verdade há muitos faróis por lá, pois a costa é toda recortada em rochedos e penhascos, sem falar das malditas pedras semi-submersas mar adentro. Além disso o povo bretão é tradicionalmente muito ligado ao mar. Bingo! Agora vocês entendem minhas motivações.

Para completar, eu estou na capital não-oficial da Bretanha: a inclusão do departamento Loire-Atlantique na região do Pays de la Loire é contestada por 62% dos habitantes. Não é raro ver por aqui pessoas com adesivos com o triskelion colados nos carros. Boa parte dos meus colegas são bretões e há cinco bretões no meu grupo de trabalho (de 28 pessoas). Já vi alguns cartazes do tipo "Aprenda a falar bretão!" espalhados pela cidade e existem instituições que ensinam a língua por aqui. E vem aí mais um fato interessante: o bretão é o último idioma céltico em uso. Ele tem mais de 3.000 anos de idade e uma quantidade inacreditável de defensores para uma língua "morta" e que não tem mais nenhuma utilidade prática.

E depois dessa introdução descomunal feita para que vocês pudessem entender todo o contexto e todo o significado da minha empreteitada, eu digo: fui à Bretanha! Pela segunda vez, na verdade. A primeira foi pra visitar uma indústria de fundição na semana passada, numa cidade bem próxima daqui e eu de fato nem me senti na Bretanha. Minto, chovia bastante quando eu fui e isso sim tinha cara de Bretanha. Uma colega minha de Rennes, capital administrativa, me chamou juntamente com outros amigos pra passar um fim de semana na casa dela. Éramos nove pessoas, seis franceses e mais eu, o Roger e o Rodrigo de brasileiros. Topei na hora, é claro. Programa 0800 pra região francesa que eu mais queria conhecer e ainda mais sabendo que eu não vou viajar nas férias de Tous Saints porque a grana tá curta...

Fomos! Partida na noite de sexta feira 09/10 em dois carros após um pequeno acidente (o motorista fechou a porta na minha mão, mas nada de grave). Chegamos, comemos, dormimos. Não é muito interessante, mas fazer o quê? Estávamos cansados. No dia seguinte o passeio começou de fato: fomos a Saint Malo, uma cidade turística no litoral da Bretanha. E fazia um tempo maravilhoso.

A cidade é estonteante. É um aglomerado portuário, cujo porto é integrado à cidade. Eu acredito que isso reduza bastante a degradação urbana desse tipo de região e ainda deixa o aspecto do lugar muito simpático. A cidade é toda rodeada por muros (e altos!) e é possível contornar toda a antiga cidadela no alto deles. O centro da cidade é povoada de lojinhas de lembranças. Cartões postais, miniaturas de faróis, barômetros e termômetros náuticos, quadros de nós, facas e espadas, pistolas "antigas", bandeiras da Bretanha e bandeiras piratas, tigelas com quase todos os prenomes utilizados na França, livros e mais livros. Impossível não querer comprar tudo.



Após chegar, comemos e começamos nosso passeio. Uma caminhada sobre os muros para ter uma vista panorâmica do mar. Havia rochedos próximos dar orla e um farol mais ao longe. Num dos rochedos há um espécie de fortaleza erigida Deus sabe como. Interessante observar que o acesso aos rochedos depende da maré, pois existe um caminho que fica encoberto durante a maré alta. Quando chegamos o caminho para o primeiro rochedo estava semi-submerso, mas após alguns minutos ele ficou acessível. O lugar é cheio de placas com alertas e ordens expressas de ficar nos rochedos até que a maré baixe novamente, caso o visitante fique ilhado. No rochedo mais próximo, chamado de Grand Bé, encontra-se a tumba do escritor francês Chateaubriand. Sua obra mais famosa é um livro de memórias e no seu epitáfio (escrito por ele mesmo) consta "Aqui repousa um dos maiores escritores franceses". Tá bom que o cara se garantia, mas humildade definitivamente não era o forte dele. Infelizmente não visitamos o segundo rochedo (Petit Bé), pois a maré não ajudou.



Na volta pela cidade, outra vez sobre os muros, conversávamos e ríamos alto quando fomos interpelados por uma mulher com sotaque:


Senhores, façam silêncio. Eu estou trabalhando, estou aqui com 48 americanos e vocês estão atrapalhando a excurssão.



Quanta felicidade! Quando eu começo a achar francês um bicho pedante, vem uma americana para me lembrar que o depósito de lixo sociológico é do outro lado do Atlântico.

De volta ao centro da cidade. Comprei meus cacarecos. Dois cartões-postais, duas insígnias (um triskelion e um brasão da cidade) para costurar na mochila, um pôster do farol de Ar-men (de uma foto tirada por Jean Guichard) e um livro sobre os faróis do oeste da Europa. O Roger comprou um livro sobre a história da Bretanha e o Rodrigo um livro de iniciação ao bretão.

De volta a Rennes, fizemos uma pequena festinha na casa da nossa anfitriã. Outros amigos dela, residentes na cidade, compareceram. Isso deu origem a alguns atritos e algumas coisas que não me agradaram muito. Eu estava lavando a louça para ajudar um pouco e diminuir a bagunça quando um dos amigos dela começa:


- Por que você está lavando a louça?
- Para ajudar e também para fazer uma cortesia pra Solaine, afinal ela está cedendo a casa para a gente.
- Ah, tá. E vocês costumam lavar muito a louça no Brasil?

(pequena pausa e um olhar enregelante)

- Só quando não está limpa. Eu não faço isso por hobby.



O cara se sujeitou a ouvir uma resposta atravessada no estilo dos Bezerra, não foi culpa minha. Respondi com meu sarcasmo habitual. Apesar de tudo, foi melhor do que a resposta que ficou entalada na garganta do Roger e que ele não soltou por educação ("Com a mesma frequência com que vocês tomam banho"). Um pequeno aparte no texto: durante o fim de semana somente os brasileiros e a anfitriã tomaram banho, os demais centraliens que foram não tomaram.

Festinha vai, festinha vem, o povo dançando e eu na minha, pois eu sou nulo na dança. Converso com um, converso com outro e me vejo num grupo conversando com mais duas meninas. Não lembro qual foi o comentário que eu fiz, acho que alguma coisa sobre o tempo, sobre estar sentindo um pouco de frio e o fato de no Ceará a temperatura ser sempre maior que 25º. Resposta de uma delas: "Que bizarro". Tá certo, guria, o que é teu te espera. Esperava o quê de uma região do lado da linha do Equador? Não sei se é porque eu já estava puto com a resposta do outro cara ou se pelo fato dos amigos da Solaine já terem quebrado três copos e ela expulsar os brasileiros da cozinha ou por eu estar me sentindo deslocado na festa, mas a questão é que a minha paciência estava num nível perigosamente baixo. E a conversa prosseguiu até que a garota falou:


- Ouvi falar que no Brasil vocês trocam de capital a cada cinco anos. É verdade?
- ISSO sim é bizarro.

(Risinho sem graça. Dela)

- Não é algo muito inteligente deslocar todo o aparato burocrático de um país a cada cinco anos, não acha?

(Risinho mais sem graça ainda. Fim da conversa)



Fui dormi ainda com os amigos dela fazendo bagunça lá embaixo. O fato gerou uma pequena discussão no dia seguinte entre alguns dos centraliens que ela convidou sobre o que era a verdadeira amizade. Nós a conhecemos há pouco mais de um mês, mas fomos super voluntariosos na hora de ajudar com a bagunça. Os amigos do peito não fizeram nada. Não entrei na discussão, preferi observar o que os outros falavam.

Voltei para Nantes relativamente cedo, pois ainda tinha que lavar roupa. Saldo da viagem positivo (para minha conta bancária nem tanto, foram 50 euros a menos, mas muito menos do que seria se eu fosse de trem). Voltei feliz de finalmente ter conhecido a Bretanha e com mil idéias na cabeça para o passeio de bicicleta que eu quero fazer na região nas férias de verão do ano que vem. A foto do farol já está pregada na parede adjacente à minha cama e as insígneas estão costuradas na minha mochila, junto com uma insígnia do Eurofighter italiano que eu comprei em Lisboa.

A Fanfrale

Muito bem, o blog andou meio largado às moscas. Peço perdão por isso e aproveito para escrever um post sobre uma das (boas) razões da minha ausência. Aqui na escola existe uma banda de instrumentos de sopro (uma fanfarra) chamada Fanfrale, "La fanfarre de l'École Centrale". Uma das minhas ambições mesmo antes de entrar aqui era participar da Fanfrale.

Pois é, entrei. Fácil assim? Não exatamente, é melhor contar por partes. A Fanfrale é um grupo heterodoxo, não se trata de apenas de tocar determinadas músicas e pronto. Os músicos do grupo se vestem de maneira esdrúxula, com roupas esfarrapadas, bregas e berrantes. Isso faz parte do "espírito fanfarrão", algo que espera-se que todo os integrantes tenham. É algo como estar a um passo do teatro, a outro do circo e a outro da desmoralização pública e sentir-se à vontade com isso.

E como se entra na Fanfrale? Em tese é só chegar e entrar. Não existe um exame de aptidão nem nada do tipo. Quer dizer, oficialmente... Os veteranos nos diziam continuamente que a Fanfrale é um estilo de vida associativa que exige dedicação e também identificação com a identidade do grupo. Trocando em miúdos: para ser aceito é preciso comparecer a todas as soirées que eles organizam durante o período de integração, e não foram poucas. E os caras são hardcore, bebem bastante e se você estiver sem um copo de bebida na mão sem dúvida eles vão colocar algo para você beber. Olha que eu sou chegado em uma cervejinha, mas várias vezes eu usei a desculpa de ir no banheiro pra jogar o excesso de bebida na privada.

O ápice da integração foi o Appartathlon da Fanfrale. Tratava-se de uma soirée análoga ao Appartathlon da escola, salvo que foi feita nos apartamentos dos membros veteranos da Fanfrale. Em cada apartamento havia uma bebida diferente e o consumo era obrigatório. Cerveja, vinho, vodka e tequila (pra terminar). Fora as várias brincadeiras idiotas que os veteranos faziam e cuja maior parte eu me recusei a fazer.

Terminado o período de integração, as coisas se acalmam. Os fanfarrões são as pessoas mais sérias que se pode imaginar quando o assunto é trabalho. Temos ensaios duas vezes por semana nas noites de quarta e sexta e o clima de brincadeira é frequentemente trocado pela disciplina marcial. É nesse momento que entra o outro aspecto da seleção natural, pois temos que nos virar para aprender as músicas seja de ouvido ou com as partituras. Temos prazos para aprendê-las e vale lembrar que a Fanfrale assina contratos de apresentação e é extremamente necessário estar bem treinado. Só fica então quem é dedicado e aguenta o rojão.

Alguns de vocês devem estar se perguntando o que eu toco, já que o único instrumento de sopro que eu tocava (ou fingia que tocava) no Brasil era a gaita e ela não faz parte dos instrumentos da Fanfrale. Pedi para tocar saxofone, embora não soubesse tocar, não houvesse um sax para mim e houvesse já bastantes saxofonistas no grupo. Dependo de empréstimos para poder treinar e além de aprender as múcas eu ainda me deparo com o desafio de aprender um novo (e difícil) instrumento. Todos os novatos que entraram no grupo agora tocam e possuem seus instrumentos há algum tempo, salvo eu e o Thiago. Ele está passando pelo mesmo processo, mas com uma tuba.

E apesar de todos os obstáculos o que eu estou achando? Fantástico. Não foram poucas as vezes que eu pensei em desistir, fosse pelo aprendizado do instrumento e das músicas, fosse pelas atitudes dos veteranos, confesso que toda vez que eu via a Fanfrale tocar eu renovava meu entusiasmo. Sobretudo quando eu fui para a primeira hyénage do ano. Uma hyénage é uma apresentação no centro da cidade com o objetivo de conseguir dinheiro. Resumindo: a gente toca em troca de esmolas, vende cds e deixa os cartões de visitas e os adesivos disponíveis. Todos foram vestidos como fanfarrões, mesmo os novatos. Não tocamos, apenas dançávamos e arrecadávamos a grana. E foi muito foda. Os veteranos disseram que foi uma dia magro, pois arrecadamos "apenas" 293,00 €. Dinheiro que, entre outras coisas, vai servir para comprar novos instrumentos para a Fanfrale, o que significa que vou ter um sax para treinar.



No sábado passado me apresentei com o grupo pela primeira vez. Toquei apenas duas músicas com o sax, as duas únicas que eu sabia. Nas demais eu apenas fiz um teatrinho com uma tuba quebrada, fingia que tocava alguma coisa. Para que melhor?