Inverno de 2010: Luxembourg

Tamanho não é documento

Não é de admirar que o nome do país que possui a maior renda per capita do mundo comece por Lux. Luxemburgo, ou em francês, Luxembourg, é uma miniatura de país espremida entre a Alemanha, a Bélgica e a França e divide raízes culturais latinas e germânicas. Sua economia, contemporaneamente falando, se desenvolveu em torno da indústria siderúrgica. A empresa Acelor, líder mundial do setor, é luxemborguense (ou era, antes de ser vendida pro indiano Mittal). O país é um Grão Ducado trilíngue (francês, alemão e luxembourgois) e laico, apesar de ser predominantemente católico.

As origens da formação do país remontam ao século X, quando Sigfried, o Conde de Ardennes erigiu um forte no rochedo de Boch. O tal rochedo, uma ponta de pedra que despenca vertiginosamente em direção ao rio Alzette, que corre lá embaixo no fundo de uma garganta. Por causa de sua localização privilegiada, naturalmente defendida por um penhasco em três lados, o castelo tornou-se uma fortaleza inexpugnável. A cidade expandiu-se na direção do único lado do castelo que requeria a construção de muralhas para ser protegido. Luxembourg tornou-se uma espécie de oásis da engenharia militar durante a Idade Média, algo como o que hoje representa Barcelona ou Berlim para a arquitetura moderna.


Começando a visita

Como de habitude, fizemos um reconhecimento a pé. A cidade era agradável, mas logo descobrimos que também era cheia de altos e baixos e andar a pé era bem cansativo. O mapa que pegamos no Ofício de Turismo sugeria uma rota de passeio a pé, mas logo descobrimos que caminhos curtos não necessariamente significam caminhos fáceis. Muitas vezes dois pontos separados por uma pequena distância no mapa estavam a metros e metros de altura de diferença.

O nosso passeio começou pelo centro da cidade. Logo no início passamos pela frente do palácio grã-ducal, onde um sentinela fazia uma monótona rotina de trinta passos para um lado, meia-volta e trinta passos para o outro. O nosso passeio nos conduziu por ruas sinuosas no centro da cidade e em seguida ao fundo da garganta onde corre o rio Alzette. Passei a me pergunta se as escarpas de Berne eram realmente tão altas assim, pois olhando a cidade ali de baixo eu me sentia um anão. As pontes de Luxembourg, bem menos numerosas que as da capital suíça, também eram estonteantemente altas e longas.

Paramos para almoçar em um restaurante português. Luxembourg é a maior colônia de imigrantes portugueses na Europa. Aproveitei para falar um pouco a língua pátria, embora eu não entendesse um décimo do que os caras no bar falavam... Aliás, Luxembourg tem essas particularidade: 37% da população é estrangeira. O mais interessante é que apesar disso ela mantém sua identidade nacional e um dos indícios disso é a persistência na utilização da língua deles, mesmo pelos jovens (um jovem nos abordara mais cedo em luxembourgois).


Nem tudo são flores

A relação com a minha companheira de viagem já vinha se deteriorando, como vocês viram no último post. Devo dizer que a coisa piorou substancialmente em Luxembourg. Não foi gradualmente, foi de uma vez. Ela passava uma boa parte do tempo procurando McDonald's para usar a rede wifi de lá para enviar um trabalho que ela deveria entregar na volta às aulas. Eu não me importava, pois até me permitia descansar um pouco do ritmo frenético que ela queria impor ao passeio. Mas essas idas ao McDonalds ficaram cada vez mais frequentes e eu começava a me irritar.

No domingo, último dia da nossa viagem, resolvemos ir pela manhã a um bairro mais afastado onde se localizam alguns prédios que pertencem à União Européia. Havíamos visitado o lugar na noite anterior, mas desejávamos vê-lo à luz do dia. O clima estava feio, mas relativamente estável quando saímos. Chegando lá, porém, a situação piorou, o chuvisco virou chuva e o vento nos arrastava. Eu me colei a uma parede para me proteger, mas a Tonia seguiu. Tentei convencê-la a ficar, mas não teve jeito. Seguimos. Uns 500 m adiante ela reclamou do tempo e eu me surpreendi.

- Se isso te incomoda assim, por que você não ficou no abrigo em que eu achei?
- Que abrigo?
- Aquele em que eu fiquei quando a chuva piorou.
- Você não disse nada.
- Disse, mas você quis continuar.
- Pode até ter sido, mas é que eu não escuto bem quando estou com capuz.

Como se precisasse escutar algo para entender porque eu não queria avançar... Agora estávamos ali, molhados até os ossos e morrendo de frio. A estanqueidade do meu sapato tinha ido pro espaço e tudo o que eu sentia nos pés era uma espécie de mingau feito do que um dia foi o entressola.

Voltamos ao centro da cidade pela tarde e nos abrigamos em museu. Francamente, não aproveitamos nada do acervo e não estávamos nem um pouco no humor de visitar museus. Estávamos lá muito mais para nos abrigar da tempestade do que para ver obras de arte. Encontramos por acaso o Alberto (espanhol) e o Felipe (chileno), dois veteranos nossos que estavam de passagem por Luxembourg aguardando o trem para voltar para casa. Eles vinham da Bélgica e fariam uma correspondência ali. Descobrimos que eles pegariam o mesmo trem que nós.

Nos separamos, pois a Tonia queria ir no McDonald's para ver se os colegas de grupo dela tinham gostado do trabalho que ela enviara. A tempestade havia piorado. O vento havia derrubado galhos, quebrado janelas, disparado alarmes de carros, estava um inferno. Ela inventou de pegar uma rua estreita que nos levaria até a lanchonete, mas eu rapidamente observei três pesados mastros de aço que sustentavam bandeiras de propaganda e no mesmo instante percebi o que ia acontecer. Parei. Enquanto ela avançava um dos mastros caiu com o vento. Eu mandei ela voltar, pois acreditava que os outros dois cairiam também. Ela virou-se pra mim e fez um gesto de "não estou escutando, pois estou de capuz". E, tal qual a cotia que cuida do rabo do macaco, eu fui atingido por um fragmento grande de uma placa do McDonald's que havia se quebrado há pouco. O vento projetou a placa no meu tornzelo, fazendo uma incisão de 1 cm na minha perna. Confesso que naquela hora eu me arependi de não ter deixado aquele mastro esmagar aquela cabeça loira.

Depois de ver os emails dela, voltamos para o albergue e ficamos prontos para partir. Era pouco menos que 15:00 e o nosso trem sairia às 17:30. Eu insisti para sairmos mais mais cedo, pois não sabia se aquela tempestade poderia piorar. Ela arredou pé e quis ficar no albergue fazendo as correções que os colegas dela sugeriram para o trabalho... Não adiantou argumentar. Saímos às 16:50, e apenas depois de eu insisttir muito para sairmos 10 minutos mais cedo do que ela queria. Chegamos na estação às 17:07 e no telão estava marcado que o nosso trem tinha sido cancelado por causa do mau tempo.

Corremos pro balcão, onde fomos atendidos por uma funcionária pantipática e pouquíssimo prestativa. Ela nos sugeriu insanamente de tentar pegar o trem que ia para Paris às 17:10 (já eram 17:08). Óbvio que não conseguimos. Remarcamos para o trem seguinte. O grande problema é que o tempo era bem apertado e mal dava para chegar em Paris, trocar de estação e pegar o nosso trem para Nantes, o último da noite. Se ele atrasasse, já era. Nantes só no dia seguinte. Os nossos veteranos, mais precavidos do que ela, chegaram mais cedo e pegaram o trem das 17:10.

O que não sabíamos é que essa chuva na verdade era a tempestade Xynthia, que arrasara a costa oeste da França horas mais cedos e que agora se deslocava para o leste, onde estávamos. Ela deixou um rastro de caos por onde passou, inclusive no sistema ferroviário. Eu me queixei, disse que era uma pena tudo isso, pois eu precisava estar em Nantes no domingo à noite. Sabe-se lá porque, a louca se sentiu ofendida e perguntou o que eu queria que ela fizesse num tom muito hostil. Quando eu fui tentar explicar que eu não estava reclamando dela, ela repetiu o comportamento infantil que ela já tinha mostrado em Berne: virou a cara e ficou repetindo a mesma coisa em voz alta para não me ouvir.


Nunca é tão ruim que não possa piorar

Breve: o nosso trem atrasou. Vinte minutos e nós não poderíamos atrasar um minuto sequer. Nossa correspondência em Paris parecia perdidas. Embarcamos e explicamos a situação para o fiscal do trem. Aproveitamos também para perguntar se havia algum atraso previsto na saída do trem que iria para Nantes, pois isso nos daria uma margem. Nada, trem na hora. Ele disse que sentia muito, mas que poderia conseguir gratuitamente um hotel para nós em Paris caso tivéssemos que pegar o trem no dia seguinte.

A Tonia disse que tinha uma amiga em Paris que poderia talvez nos hospedar, mas que ela não gostaria de incomodar. Eu falei então que se chegássemos num horário em que ainda houvesse esperanças de pegar o trem, nós partiríamos para a estação e tentaríamos. Caso contrário, pegaríamos o hotel que a empresa nos ofereceu. Cristalino, não é? Pois ela disse que estava "me entendendo com dificuldade", como se o que eu falasse não tivesse sentido nenhum.

Chegamos tarde. Ainda perguntei uma última vez se o trem que partiria para Nantes estava atrasado. Os funcionários responderam que ele sairia na hora, ou seja, dali a 10 minutos. Como precisávamos de 35 minutos para chegar à estação, consideramos o trem perdido e fomos para o hotel, que era em frente a estação onde chegamos.

Ela tomou o banho dela primeiro e em seguida eu tomei o meu. Enquanto eu estava no banheiro ela se comunicou com o Alberto e o Felipe, que ainda estavam esperando o trem para Nantes. Ele já estava 50 minutos atrasado e a cada dez minutos o atraso era atualizado. Se nós tivéssemos ido para a estação, nós o pegaríamos. Entretanto, como me disseram que ele estava no horário, eu não quis jogar fora o hotel. Foi uma decisão conservadora, sem grandes riscos. Quando ela soube disso, empacotou as coisas e saiu correndo feito uma louca. Eu disse que não conseguiríamos chegar a tempo.

E de fato não conseguimos. Após andar uma única estação de metrô, recebemos uma mensagem dos meninos dizendo que o trem tinha partido. Ela falou que estava mega decepcionada e que, se tivéssemos ido para a estação como ela queria teríamos conseguido pegar o trem. Eu pedi desculpas, disse que a culpa de a gente ter perdido esse trem era minha, afinal quem tinha insistido em tomar aquela decisão e não tomar riscos tinha sido eu. E ela falou:

- Sim. É SUA culpa. Se tivéssemos feito o que EU disse. teríamos conseguido.


Meu sangue ferveu. Desde o começo da viagem ela pedia desculpas por coisas bestas, insignificantes, tais como esquecer de pôr duas maçãs na bolsa dela para comermos mais tarde, ou escolher um caminho errado numa rua. Coisas realmente sem importância. Hoje eu acredito, e só agora vejo isso, que ela fazia isso só pelo prazer de ouvir um "O que é isso, Tonia? É claro que isso não é sua culpa". E agora, quando eu peço desculpas ela solta uma resposta desssas. E digo mais, optei por essa decisão porque ela me havia dito que não queria perturbar a amiga dela, o que fazia do hotel uma saída óbvia. Subitamente, todo o peso do nosso fracasso fora transferido para mim. E a briga começou, pois a minha paciência já tinha superado em muito qualquer expectativa.

Para piorar, o quarto do hotel tinha uma cama de casal. Situação desagrabilíssima. Durante a noite eu acordei e ela estava ocupando dois terços da cama. Eu estava de costas para ela e havia acordado com uma pancada nas costas. Achei que pudesse ter sido ocasional, enquanto ela se revirava dormindo. Ela estava então com os dois braços contra as minhas costas. Veio um segundo empurrão que me deixou ainda mais próximo da beira da cama. Aguardei. Veio o terceiro empurrão e eu tive certeza de que ela estava fazendo aquilo de propósito. Plantei os pés no armário na minha frente e estendi as pernas com força, empurrando ela pro outro lado da cama.


Acordamos bem cedo. Fomos para a estação emburrados e logo descobrimos que o nosso trem não estava aparecendo no painel eletrônico. Poucos segundos depois, foi informado pelo sistema de alto-falantes que o trem de 6:10 para Toulouse não estava aparecendo no painel por causa de um problema do painel, mas estava confirmado e aguardava na plataforma. Eu pensei "oras, o nosso trem é às 6:30 e pode estar sofrendo o mesmo problema". Resolvi discutir isso com ela:

- Você ouviu isso?
- Claro que eu ouvi! Eu entendo perfeitamente o francês.


Discussão encerrada. Eu não precisava seguir adiante para saber que aquilo não levaria a lugar nenhum. Virei as costas e fiz o que eu planejava propor a ela: perguntar a alguém da companhia de trem se o nosso trem estava com o mesmo problema do trem de Toulouse. Após 200 m de caminhada cheguei ao balcão e não encontrei ninguém, virei as costas e lá estava a Tonia cospindo fogo. Eu estava com os nossos bilhetes de trem no bolso e ela soltou os cachorros em cima de mim porque eu estava "prestes a deixá-la na estação depois de ter fugido com o bilhete dela". Parece que foi assim que ela interpretou as coisas. Chamou-me de estúpido e de mais um sem número de outros adjetivos nada lisonjeiros.

Finalmente, pegamos o trem. Ele realmente teve o mesmo problema do outro: o trajeto estava confirmado embora não aparecesse no painel. Esse foi o fim da nossa viagem. Nem preciso dizer que voltei atrás nos planos de morar com ela. Eu e o Thiago havíamos combinado de morar com ela e a Noémie, mas depois dessa creio que a convivência seria impossível...