O processo de readaptação

Este texto abre um novo marcador do blog, o guia de veterano. Ele provavelmente conterá poucos textos (talvez apenas este), mas deve ser útil para aqueles que voltaram de programas de intercâmbio. Não que eu vá dar a solução dos seus problemas - seu eu desse, eu cobraria por isso, ora! - mas talvez ajude o leitor com dor de cotovelo dos seus tempos dourados na Zoropa a entender o que está passando na sua cabecinha ainda atordoada pela diferença de fuso horário.


A depressão pós-intercâmbio existe...

... mas não é nenhum bicho papão e uma hora, cedo ou tarde, acaba. Talvez por isso eu tenha demorado tanto para escrever este texto, que eu já planejava desde antes de partir da França, pois eu queria publicar minhas impressões apenas depois que eu tivesse mais segurança de que eu já havia superado esse processo. Acho que é chegado o momento.

É verdade que a volta pro Brasil é desconcertante e pode ter N razões diferentes, então vou tratar aqui apenas do que valeu pra mim. Eu acreditava que chegaria aqui desacostumado com os hábitos, com a rotina, com as pessoas, que eu seria um estranho no ninho e viveria uma constante sensação de não mais pertencer a essa realidade, além de soltar expressões em francês a torto e a direito. Equivoquei-me. A impressão geral é de que eu nunca saí daqui. Tudo me parece banal, do ônibus ao supermercado.

O desconforto então não foi causado por uma readaptação aos costumes brasileiros, mas à perda de algumas coisas que me eram muito caras. A principal foi o conceito de casa. Eu já reparara antes, quando voltei ao Brasil durante as férias, que eu chamava meu apartamento em Nantes de casa com muito mais facilidade do que este apartamento onde eu vivi durante vinte anos. Eu senti de imediato o incômodo de não poder organizar a casa da forma como eu gosto, não pode trazer visitas ou fazer refeições para os amigos, cosias que tinham se tornado tão naturais para mim em Nantes. Acho que esse foi o aspecto mais perturbador e o que me levou a cogitar durante um bom tempo a arrumar um emprego para me mudar para outro lugar sozinho ou com um amigo. A ideia continua, mas não com a urgência que havia antes e sim com a intenção de resgatar o que houve de bom da experiência de morar sozinho e com amigos.

Outro fator de tensão muito grande foi o fato de eu ter voltado cedo - fui o primeiro brasileiro da minha turma a voltar por conta de decisões e imposições desatinadas do coordenador do programa na minha universidade. Meus amigos estão todos na França ainda, fazendo um estágio mais longo, aproveitando esse último semestre na Europa enquanto eu fui obrigado a voltar pro Brasil e recuperar cinco semanas de aula. A primeira atividade que eu fiz na universidade foi uma prova da disciplina mais difícil do semestre. A terceira foi outra prova. Não bastasse todo o alvoroço típico da vida maso-acadêmica de um estudante de engenharia -  potencializada por cinco semanas de aulas perdidas -  eu ainda estou às voltas com toda a burocracia para a validação das disciplinas que eu fiz na França e que me permitirá diplomar-me antes de completar uma década de universidade.


A influência do clima

Eu me queixava muito do clima na Europa. Da escuridão invernal, do céu sempiternamente cinza, do frio... Costumava dizer que isso era um dos principais motivos para a minha depressão e desmotivação, que - vejam só - eram sempre mais intensas no outono e no inverno.

Eu não estava errado. Nos primeiros dias eu vivi um período de disposição intensa, acordava-me naturalmente às 6h00 e ia com toda a disposição do mundo para a universidade. Tentei ver isso com imparcialidade, julgando talvez ser um jet lag positivo. Agora posso afirmar sem dúvida alguma que o clima do Ceará - ensolarado e mais quente que o inferno em dia de pane de ar-condicionado - é fundamental para o meu corpo. Mesmo, apesar da volta da preguiça e dos três toques seguidos no botão Soneca do despertador, eu vejo que meu rendimento médio é muito superior ao que eu apresentava na França.


A aceitação da tatuagem


Vamos falar de um assunto polêmico, a tatuagem. Isso agora é assunto de readaptação dos outros a mim. Eu achava que meus pais iam ficar horrorizados, mas aparentemente tudo se passou bem. Meu pai, que eu acharia que estaria me esperando no aeroporto com um facão pra arrancar-me o braço, ficou olhando o desenho, fez um comentário aqui e ali e só. Minha mãe soltou um "é linda, mas grande demais". Ok, better than expected.

Na universidade tudo se passou bem. Via de regra aceitação positiva e entusiasmada dos meus colegas. Os dois professores que eu mais respeito no meu curso, meu orientador e a antiga orientadora dele, não ligaram e minha imagem para eles não foi prejudicada. Um outro professor fez alguns comentários jocosos mas num clima amistoso. Um quarto professor não fala nada, mas não consegue esconder os olhares enviesados de choque.


Mudanças são inevitáveis

A despeito do que eu disse antes, que a sensação é de que eu nunca deixei o Ceará, é evidente que mudanças acontecem. Lógico que tais mudanças são menos perceptíveis para os que voltaram, mas elas são visíveis ao menor olhar daqueles que ficaram. A maior parte é anedota pura: elas não têm importância, mas vale a pena falar delas.

A primeira diz respeito ao consumo de água. Na França quando você quer água basta colocar um copo debaixo da torneira e mandar ver. Eu tinha o hábito de tomar água após escovar os dentes, lavar as mãos ou durante o banho, de tal forma que beber um copo com água virou um hábito obsoleto. Como a água era da torneira eu só poderia tomar quente ou natural. Eu surpreendi minha mãe nos primeiros dias ao pegar o copo e beber água saída direto do filtro, sem refrigeração alguma.

A segunda também surpreendeu um pouco meus pais na cozinha. O meu paladar se tornou menos tolerante a açúcar e eu tenho uma vaga ideia da razão. Quando eu acordava atrasado para o estágio eu costumava tomar café da manhã no caminho, num McDonald's na estação de La Defense. Manobrar dois croissants, um copo de café e ainda colocar e dissolver açúcar era uma tarefa complicada, de tal modo que eu aboli o ato de adoçar o café para ganhar tempo e diminuir o risco de queimaduras enquanto corria com meu café da manhã nas mãos. Ao fim de duas semanas eu simplesmente não conseguia mais suportar café com açúcar e essa mudança no paladar se propagou para outros alimentos e bebidas.

Ainda sobre paladar... Meu pai costumava me recriminar por eu não gostar de vinho. Esse sermão era praxe todo fim de ano, quando ele me obrigava a tomar pelo menos um gole de vinho e/ou espumante durante as celebrações. Lembro-me que tive a impressão de que para ele o fato de eu ir para a França, onde provavelmente eu aprenderia a apreciar vinhos, era mais importante do que o diploma ou todo o resto. Existe uma discussão célebre que tive com meu pai há muitos anos atrás quando ele me ofereceu um cálice de vinho madeira seco (R$22,90 o litro) que tinha sido presenteado por uma amiga portuguesa e eu disse que preferia vinho Padre Cícero (R$9,00 por cinco litros). Eu de fato voltei com o paladar mais apurado para vinhos e já tive o prazer de tomar um tinto chileno excelente. E tive o "prazer" de tomar um vinho sangue-de-boi novamente e me perguntar como é que eu conseguia gostar daquele troço! Não me julguem pedante por este parágrafo, por favor.

Minha família diz que eu voltei mais cuca-fresca, menos estressado, mais maduro. Isso é bom, talvez seja verdade. Talvez eu realmente tenha alcançado um estado de maior serenidade, de levar a vida com um pouco mais de humor e isso me faz um bem danado. Meus colegas não perdem a oportunidade de que eu voltei gay, segundo uns, ou mais gay, segundo outros. Essa é a desvantagem de ir para a França, a associação é imediata, portanto prefiram intercâmbios na Alemanha e vocês serão considerados mais machos ao voltar. 


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