A burocracia de retorno

Uma vez eu escrevi sobre a burocracia de partida, todo o protocolo a ser seguido quando chegamos no nosso destino na França. Este é um texto prático e análogo ao primeiro, mas trata das burocracias de volta ao Brasil. Como todos já estão familiarizados com a burocracia brasileira - ou assim eu imagino - então trata-se muito mais de um pequeno lembrete do que de um guia de fato. Entretanto, vale a pena lembrar-se.


Justificação de ausência em eleição

Fundamental para todos o que querem fazer concurso público, pois uma ausência não justificada nas eleições possui caráter eliminatório nas inscrições de qualquer concurso. O procedimento é extremamente simples. A justificativa deve ser feita até 60 dias após as eleições, todavia para residentes no exterior esse prazo passa a contar a partir da data de regresso, então fiquem de olho vivo para não perderem o prazo.

Mesmo que você tenha perdido a data limite, ainda assim é possível regularizar a situação sem problemas pagando uma multa. O valor é bem baixo. Mais informações no site do TRE-SP.


Exercício de apresentação da reserva

Após o alistamento e a apresentação ao serviço militar, os reservistas são obrigados a realizar o exercício de apresentação da reserva durante cinco anos. Ele consiste em apresentar-se anualmente do dia 9 ao dia 16 de dezembro na sua Organização Militar (OM) para carimbar o certificado de reservista.

Isso também é extremamente importante para aqueles que pretendem prestar concursos públicos, já que a quitação das obrigações militares é pré-requisito para todos os homens que desejam realizar concursos. Segundo o site FAQ do Exército (questão 17), reservistas no exterior devem se apresentar na mesma data em uma Repartição Consular do país de residência. Eu não me apresentei em nenhum consulado e ainda não regularizei minha situação, pois ainda me faltam dois carimbos, mas acredito que ela possa ser regularizada mediante pagamento de multa.


Renovação de carteira de motorista

Esse é provavelmente o caso de muitos intercambistas. Ao completar 18 ou 19 anos, durante o primeiro ano de faculdade ou último ano de colégio/cursinho muitos fizeram os exames para a carteira de habilitação, cuja validade é de cinco anos. Esse período expira mais ou menos na data do nosso retorno. Minha carteira estava vencida há 10 dias quando cheguei.

O procedimento de renovação é bem simples e está descrito no site do DETRAN-CE. O procedimento para outros estados deve ser análogo, acredito eu. Os documentos necessários são:
  • Fotocópia do RG
  • Fotocópia do CPF
  • Fotocópia de um comprovante de residência datando de menos de 90 dias (lembrem-se desse prazo!)
  • Comprovante de pagamento da taxa. Esse valor para mim foi de R$102,08 e pode ser pago em qualquer agência do Banco do Brasil, Bradesco, Caixa Econômica Federal e Casas lotéricas.



Reabertura de conta bancária

Alguns devem ter fechado suas contas bancárias brasileiras durante os dois anos de intercâmbio para evitar o pagamento de taxas ou por qualquer outra razão. Eu mantive minha conta aberta, pois era por ela que eu recebia minha bolsa do Banco do Nordeste. Ainda que ela não tivesse essa serventia, eu a teria mantido aberta do mesmo jeito para ganhar mais tempo como cliente do banco e, portanto, mais benefícios. 

Para aqueles que fecharam suas contas, lembrem-se de abrir uma nova conta. Se por ventura vocês desejam abrir no mesmo banco que antes, procurem informa-se se é possível resgatar os privilégios que vocês possuíam no momento do fechamento da conta antiga, ou quem sabe, resgatar a própria conta. O tempo de cliente é o principal indicador de confiança que os bancos têm das pessoas físicas. É ele que define os valores de cheque especial, limite de cartão de crédito e juros de empréstimos.


Declaração de imposto de renda

Muitos de nós fomos declarados como dependentes de nossos pais para a Receita Federal. Essa regalia aplica-se em casos bem específicos. Nós nos enquadramos predominantemente no caso de estudantes universitários com menos de 24 anos, o que justifica a dependência. No meu caso, e no de alguns outros poucos intercambistas, retornei ao Brasil com mais de 24 anos e terei que declarar meus impostos no ano que vem por minha conta. Aqui vai uma breve lista dos casos de dependência e que eu encontrei neste site:

1-       Companheiro (a) com quem o contribuinte tenha filho ou viva há mais de 5 anos, ou cônjuge;
2-       Filho (a) ou enteado (a) até 21 anos de idade, ou, em qualquer idade, quando incapacitado física ou mentalmente para o trabalho;
3-       Filho (a) ou enteado(a) universitário ou cursando escola técina de segundo grau, até 24 anos ;
4-       Irmão (ã), neto (a) ou bisneto(a), sem arrimo dos pais, de quem o contribuinte detenha a guarda judicial, até 21 anos, ou em qualquer idade, quando incapacitado física ou mentalmente para o trabalho;
5-       Irmão (ã), neto (a) ou bisneto (a), sem arrimo dos pais, com idade de 21 anos até 24 anos, se ainda estiver cursando estabelecimento de ensino superior ou escola técnica de segundo grau, desde que o contribuinte tenha detido sua guarda judicial até os 21 anos;
6-       Pais, avós e bisavós que, em 2007, tenham recebido rendimentos , tributáveis ou não, até R$ 14.992,32;
7-       Menor pobre até 21 anos que o contribuinte crie e eduque e de quem detenha a guarda judicial;
8-       Pessoa absolutamente incapaz, da qual o contribuinte seja tutor ou curador.


Para todos os efeitos isso é algo que só vai influenciar o ano seguinte ao ano de retorno e não é uma preocupação imediata, mas não custa nada lembrar-

O processo de readaptação

Este texto abre um novo marcador do blog, o guia de veterano. Ele provavelmente conterá poucos textos (talvez apenas este), mas deve ser útil para aqueles que voltaram de programas de intercâmbio. Não que eu vá dar a solução dos seus problemas - seu eu desse, eu cobraria por isso, ora! - mas talvez ajude o leitor com dor de cotovelo dos seus tempos dourados na Zoropa a entender o que está passando na sua cabecinha ainda atordoada pela diferença de fuso horário.


A depressão pós-intercâmbio existe...

... mas não é nenhum bicho papão e uma hora, cedo ou tarde, acaba. Talvez por isso eu tenha demorado tanto para escrever este texto, que eu já planejava desde antes de partir da França, pois eu queria publicar minhas impressões apenas depois que eu tivesse mais segurança de que eu já havia superado esse processo. Acho que é chegado o momento.

É verdade que a volta pro Brasil é desconcertante e pode ter N razões diferentes, então vou tratar aqui apenas do que valeu pra mim. Eu acreditava que chegaria aqui desacostumado com os hábitos, com a rotina, com as pessoas, que eu seria um estranho no ninho e viveria uma constante sensação de não mais pertencer a essa realidade, além de soltar expressões em francês a torto e a direito. Equivoquei-me. A impressão geral é de que eu nunca saí daqui. Tudo me parece banal, do ônibus ao supermercado.

O desconforto então não foi causado por uma readaptação aos costumes brasileiros, mas à perda de algumas coisas que me eram muito caras. A principal foi o conceito de casa. Eu já reparara antes, quando voltei ao Brasil durante as férias, que eu chamava meu apartamento em Nantes de casa com muito mais facilidade do que este apartamento onde eu vivi durante vinte anos. Eu senti de imediato o incômodo de não poder organizar a casa da forma como eu gosto, não pode trazer visitas ou fazer refeições para os amigos, cosias que tinham se tornado tão naturais para mim em Nantes. Acho que esse foi o aspecto mais perturbador e o que me levou a cogitar durante um bom tempo a arrumar um emprego para me mudar para outro lugar sozinho ou com um amigo. A ideia continua, mas não com a urgência que havia antes e sim com a intenção de resgatar o que houve de bom da experiência de morar sozinho e com amigos.

Outro fator de tensão muito grande foi o fato de eu ter voltado cedo - fui o primeiro brasileiro da minha turma a voltar por conta de decisões e imposições desatinadas do coordenador do programa na minha universidade. Meus amigos estão todos na França ainda, fazendo um estágio mais longo, aproveitando esse último semestre na Europa enquanto eu fui obrigado a voltar pro Brasil e recuperar cinco semanas de aula. A primeira atividade que eu fiz na universidade foi uma prova da disciplina mais difícil do semestre. A terceira foi outra prova. Não bastasse todo o alvoroço típico da vida maso-acadêmica de um estudante de engenharia -  potencializada por cinco semanas de aulas perdidas -  eu ainda estou às voltas com toda a burocracia para a validação das disciplinas que eu fiz na França e que me permitirá diplomar-me antes de completar uma década de universidade.


A influência do clima

Eu me queixava muito do clima na Europa. Da escuridão invernal, do céu sempiternamente cinza, do frio... Costumava dizer que isso era um dos principais motivos para a minha depressão e desmotivação, que - vejam só - eram sempre mais intensas no outono e no inverno.

Eu não estava errado. Nos primeiros dias eu vivi um período de disposição intensa, acordava-me naturalmente às 6h00 e ia com toda a disposição do mundo para a universidade. Tentei ver isso com imparcialidade, julgando talvez ser um jet lag positivo. Agora posso afirmar sem dúvida alguma que o clima do Ceará - ensolarado e mais quente que o inferno em dia de pane de ar-condicionado - é fundamental para o meu corpo. Mesmo, apesar da volta da preguiça e dos três toques seguidos no botão Soneca do despertador, eu vejo que meu rendimento médio é muito superior ao que eu apresentava na França.


A aceitação da tatuagem


Vamos falar de um assunto polêmico, a tatuagem. Isso agora é assunto de readaptação dos outros a mim. Eu achava que meus pais iam ficar horrorizados, mas aparentemente tudo se passou bem. Meu pai, que eu acharia que estaria me esperando no aeroporto com um facão pra arrancar-me o braço, ficou olhando o desenho, fez um comentário aqui e ali e só. Minha mãe soltou um "é linda, mas grande demais". Ok, better than expected.

Na universidade tudo se passou bem. Via de regra aceitação positiva e entusiasmada dos meus colegas. Os dois professores que eu mais respeito no meu curso, meu orientador e a antiga orientadora dele, não ligaram e minha imagem para eles não foi prejudicada. Um outro professor fez alguns comentários jocosos mas num clima amistoso. Um quarto professor não fala nada, mas não consegue esconder os olhares enviesados de choque.


Mudanças são inevitáveis

A despeito do que eu disse antes, que a sensação é de que eu nunca deixei o Ceará, é evidente que mudanças acontecem. Lógico que tais mudanças são menos perceptíveis para os que voltaram, mas elas são visíveis ao menor olhar daqueles que ficaram. A maior parte é anedota pura: elas não têm importância, mas vale a pena falar delas.

A primeira diz respeito ao consumo de água. Na França quando você quer água basta colocar um copo debaixo da torneira e mandar ver. Eu tinha o hábito de tomar água após escovar os dentes, lavar as mãos ou durante o banho, de tal forma que beber um copo com água virou um hábito obsoleto. Como a água era da torneira eu só poderia tomar quente ou natural. Eu surpreendi minha mãe nos primeiros dias ao pegar o copo e beber água saída direto do filtro, sem refrigeração alguma.

A segunda também surpreendeu um pouco meus pais na cozinha. O meu paladar se tornou menos tolerante a açúcar e eu tenho uma vaga ideia da razão. Quando eu acordava atrasado para o estágio eu costumava tomar café da manhã no caminho, num McDonald's na estação de La Defense. Manobrar dois croissants, um copo de café e ainda colocar e dissolver açúcar era uma tarefa complicada, de tal modo que eu aboli o ato de adoçar o café para ganhar tempo e diminuir o risco de queimaduras enquanto corria com meu café da manhã nas mãos. Ao fim de duas semanas eu simplesmente não conseguia mais suportar café com açúcar e essa mudança no paladar se propagou para outros alimentos e bebidas.

Ainda sobre paladar... Meu pai costumava me recriminar por eu não gostar de vinho. Esse sermão era praxe todo fim de ano, quando ele me obrigava a tomar pelo menos um gole de vinho e/ou espumante durante as celebrações. Lembro-me que tive a impressão de que para ele o fato de eu ir para a França, onde provavelmente eu aprenderia a apreciar vinhos, era mais importante do que o diploma ou todo o resto. Existe uma discussão célebre que tive com meu pai há muitos anos atrás quando ele me ofereceu um cálice de vinho madeira seco (R$22,90 o litro) que tinha sido presenteado por uma amiga portuguesa e eu disse que preferia vinho Padre Cícero (R$9,00 por cinco litros). Eu de fato voltei com o paladar mais apurado para vinhos e já tive o prazer de tomar um tinto chileno excelente. E tive o "prazer" de tomar um vinho sangue-de-boi novamente e me perguntar como é que eu conseguia gostar daquele troço! Não me julguem pedante por este parágrafo, por favor.

Minha família diz que eu voltei mais cuca-fresca, menos estressado, mais maduro. Isso é bom, talvez seja verdade. Talvez eu realmente tenha alcançado um estado de maior serenidade, de levar a vida com um pouco mais de humor e isso me faz um bem danado. Meus colegas não perdem a oportunidade de que eu voltei gay, segundo uns, ou mais gay, segundo outros. Essa é a desvantagem de ir para a França, a associação é imediata, portanto prefiram intercâmbios na Alemanha e vocês serão considerados mais machos ao voltar.