Pouce d'Or Parte 3

9) Um gostinho de derrota
Quando chegamos, como já havia virado costume, renovamos nosso acordo de independência de caronas. Em meia hora eles conseguiram uma carona. Havia espaço apenas para três pessoas, então sobramos.

Zanzamos pelo posto por mais meia ou mais. Ouvimos muitas negativas e houve até pessoas que se apressassem para entrar no carro com medo de nós. Isso nos abateu. Para completar, o cansaço dificultava os sorrisos e mesuras que fazíamos no começo da viagem. Na mão, debilmente segurado, o cartaz "Frankreich". Por fim uma senhora aproximou-se e tentou dizer algo. Ela só falava alemão, mas conseguimos entender que ela estava indo para uma cidade bem próxima da fronteira com a França. Olhamos no mapa e vimos que não era um bom negócio, pois a estrada que seguia de lá até o outro lado da fronteira era pequena e provavelmente seria difícil conseguir uma carona.

Resolvemos aceitar uma carona até a próxima estação de serviço. No volante, um rapaz vietnamita que eu não consegui identificar se era filho de criação ou marido da mulher. Também não estávamos com muito saco de fazer os malabarismos linguísticos no papelão e passamos quase toda a viagem em silêncio.

Chegamos na estação seguinte e demos de cara com um carro de placa francesa. Agradecemos efusivamente pela carona, mas a pressa para abordar o motorista francês antes que ele partisse nos fez esquecer de tirar a foto com nossos benfeitores. Uma pena, pois o francês nos negou a carona. Estávamos próximos de Sttutgart. Víamos muitos carros de placas da Bélgica e de Luxemburgo, o que poderia ser interessante para nós, mas ninguém parecia disposto a dar carona.

Não sei quanto tempo ficamos lá, mas estavámos muito cansados da noite mal-dormida e o tempo parecia se arrastar. Concluímos que uma placa pedindo carona para a França talvez assustasse um pouco os motoristas e decidimos escrever o nome da cidade mais próxima em que podíamos conseguir boas caronas: Mayheim. No momento em que escrevemos isso, um rapaz que já nos olhava há algum tempo com certa pena pareceu subitamente ter a atenção atraída. Ele se aproximou do seu carro, cochichou com a moça que estava no banco da frente e veio em direção a nós. Ele ia para Mayheim e nos oferecia uma carona.

Entramos no carro com um ânimo renovado e com um semblante que nada lembrava o abatimento de outrora. Conversávamos em inglês com os dois. Ele, um estudante de engenharia. Ela, uma estudante de direito. Contamos nossas peripécias. Não éramos mais só uma dupla de malucos pegando carona. Éramos uma dupla de malucos que tinha conseguido atravessar a França e metade da Alemanha em um único dia. Já tínhamos um currículo e isso começava a interessar as pessoas, a divertir, a ser um chamariz para uma boa prosa.

A conversa orbitou em torno das nossas histórias da viagem. Enquanto a prosa rolava eu prestava atenção nas estradas alemãs: largas, bem cuidadas, velozes. Súbito, passa uma Ferrari rasgando o asfalto do nosso lado e três carros de passeio que hilariamente tentavam persegui-la.

O jovem casal fez a gentileza de passar da saída que eles pegariam para nos deixar em uma estação de serviço mais movimentada. Nos deixaram o email e pediram notícias da viagem. Segue uma foto deles, tirada a 150 km/h:


Sim, ela estava com medo.


10) Quando o desespero começa a bater...
Chegamos na estação de serviço em Mayheim. Percebemos de imediato que o lugar era bastante grande e havia muitos carros estacionados. Utilizando a estratégia que utilizamos na vez anterior, fizemos uma placa para a próxima cidade: Saarbrücken. O casal nos ensinou a reconhecer placas de carro dessa cidade e de outras que pudessem ser interessantes.

A primeira coisa que fizemos foi identificar os carros estacionados que poderiam seguir viagem na direção da França. Encontramos dois carros com placas de Paris. Decidimos que cada um vigiaria um e abordaria seus ocupantes. Em quinze minutos os ocupantes do carro que eu vigiava apareceram. Era um casal de meia idade. Eu os abordei, contei um pouco a nossa história e eles me disseram que não estavam voltando para a França, mas saindo dela. Na verdade, eles estavam indo para Praga. Nesse momento deu aquele sentimento horroroso, que acredito que nem nome tenha, o sentimento do "e se". E se eles tivessem viajado no dia anterior? E se nós os tivéssemos encontrado? E se tivéssemos ido para Praga com eles? Um excelente atalho para sentir-se frustrado.

Os integrantes do outro carro não apareciam e enquanto isso fazíamos algumas outras abordagens, todas mal-sucedidadas. Embora houvessem algumas pessoas que visivelmente iam para Saarbrücken ou proximidades, nenhuma se propunha a nos levar.

A espera já passava de duas horas. Não conseguíamos acreditar que os integrantes do outro carro pudessem passar tanto tempo no restaurante. O Loïc perambulava entre os carros, procurando uma boa oportunidade. Eu já havia me largado sobre um banco, a mochila de um lado, e do outro o cartaz Saarbrücken e um mini-cartaz com um rosto sorridente desenhado. A cena deveria ser de uma ironia cômica, pois o meu semblante não tinha nenhuma semelhança com o cartãozinho que eu portava. Já não pensávamos em vitória, a nossa preocupação agora era chegar a tempo. Nossos cálculos pessimistas apontavam que não haveria tempo de margem caso acontecesse alguma eventualidade. Considerávamos para tanto que chegaríamos em Paris em três ou quatro pernadas e somávamos o tempo necessário para conseguir uma carona em cada parada.

Finalmente três pessoas falando francês saíram do estabelecimento. Ao vê-los eu tive a nítida impressão de que seria um novo fracasso, pois todos tinha um aspecto bastante esnobe, com roupas muito elegantes e um porte muito peculiar que é possível perceber nesse tipo de gente. Ainda assim os abordei e pedi uma carona para Saarbrücken. Eles hesitaram um pouco, perguntaram para onde íamos. Disse que nosso destino era Nantes via Paris. Eles consentiram em nos levar até Metz.

Não eram todos franceses. Havia uma italiana e um holandês. Eram habitués do meio artístico e voltavam de Praga, onde a mulher havia acabado de publicar um livro. A conversa deles orbitava sempre em torno de artes plásticas e arquitetura. A música que tocava dentro do carro: ópera. Nós nos sentíamos pouco à vontade nesse ambiente, ainda que eles fossem muito simpáticos. Aos poucos nós nos abrimos e eles também. Eles revelaram algumas das suas histórias de caroneiros, afinal todo mundo já foi jovem um dia e tem algo do tipo para contar. Um deles havia até participado de uma corrida maluca, cujo objetivo era chegar o mais longe possível de carro sem dormir. Ele foi o vencedor, tendo ido até a Síria.

Sinto que eles foram ganhando mais confiança na gente e eles nos ofereceram uma carona para Reims. Poucos minutos depois eles disseram que nos levariam até Paris, que era o destino deles. O fato de eles não nos terem oferecido a carona diretamente para Paris deve-se, eu creio, à necessidade que eles sentiram de nos sondar, de saber nossas intenções e se éramos pessoas confiáveis.

Eles nos deixaram num posto de gasolina num dos anéis viários de Paris, a leste da cidade, por volta das 19:30. Nossa viagem se aproximava do final. Faltava mais uma ou duas pernadas em direção ao Oeste, rumo a Nantes. Se não conseguíssimos uma carona direto, talvez uma passando por Le Mans ou Angers.


11) Nunca cante vitória antes do tempo
Tudo muito bom, tudo muito legal, salvo que restava ainda atravessar Paris. Nós sabíamos que era difícil pegar uma carona diretamente para o oeste, mas alguém que atravessasse a cidade não deveria ser tão difícil assim.

Ledo engano, quase todos os carros que chegavam no posto tinham placa parisiense e entrariam na cidade. Não eram raros os casos em que eram dirigidos por moradores das redondezas que utilizavam o posto regularmente. Os poucos carros de regiões que podiam nos interessar estavam cheios ou seus motoristas negavam caronas.

Era extremamente frustrante saber que estávamos tão perto do seu objetivo e não conseguíamos sair do canto. Passamos por uma situação muito desagradável também. Uma moça estacionou um Porsche e poucos minutos depois um homem estacionou um furgão ao lado. Decidimos pedir carona ao cara do furgão. Ele franziu o cenho, virou pra moça e gritou "Ei, senhorita! Esses dois aqui querem pegar uma carona no seu Porsche". Em seguida ele entrou no seu carro com um sorriso de sarcasmo. Muita sacanagem, ficamos numa situação extremamente constrangedora. Não custava nada recusar feito gente.

A saliva estava começando a ficar rala para explicar tantas vezes a nossa história. Ela era interessante e isso facilitava a conversa com os motoristas, mas mesmo assim não conseguíamos nada. Desenhamos três grandes pontos num pedaço de papelão: Nantes, e Munique nas extremidades e Paris ao centro. Uma grande seta ligava Nantes e Munique e escrito sobre ela estava "ontem". Uma seta de Munique a Paris estava assinalada com "hoje". Uma pequena seta pontilhada e ladeada por um ponto de interrogação ligava Paris a Nantes. Sobre todo o conjunto a frase "Amanhã: aula às 08:00". Isso de fato melhorou a comunicação, pois a compreensão da nossa história era quase imediata ao mostrarmos a placa, mas não obtivemos nenhum sucesso.

Esperávamos havia uma hora e meia. Um Volkswagen de um modelo ultrapassado e que não existe no Brasil parou numa das vagas e podia-se ouvir a música que saía de dentro ao longe. Dois rapazes de cabelos raspados saíram. Um deles entrou na loja de conveniência, enquanto o outro nos olhou com um interesse algo sarcástico e começou a nos interrogar, aproveitando para fazer algumas brincadeirinhas sobre nosso infortúnio. Como ele não pareceu ser o tipo que dava caronas e ficou lá rindo da nossa situação, nem tentamos pedir.

Foi então que ele finalmente perguntou de onde vínhamos e eu mostrei nosso cartaz. Ele ficou atônito e o cigarro escorregou para o canto da boca. Ele ficou interessado e admirado. Quando o companheiro dele saiu, ele foi logo contando nossa história. O outro perguntou então se nós tínhamos limitação de tempo e explicamos que tínhamos que chegar até as 08:00 do dia seguinte. Ele disse: "entrem logo no carro que a gente leva vocês pro oeste de Paris". E virando-se para o primeiro: "seu imbecil, você fez eles perderem dois minutos com conversa fiada. Anda logo, acelera". E fomos. O motor roncou alto e o cara passou a segunda marcha um pouco abaixo dos 90 km/h.

Eles costuravam velozmente entre os carros que estavam nas vias periféricas de Paris e não aceitavam que alguém os ultrapassasse. Caso isso acontecesse, eles tomavam a dianteira de novo e ainda fechavam o sujeito. Em boa parte do tempo o ponteiro do velocímetro orbitou em torno de 150, numa via cujo limite era 90. Em uma manobra mais perigosa, o Loïc ficou tão assustado que apertou o meu joelho. Em um determinado momento perguntamos o emprego deles e a resposta foi "desmontamos carros". Isso me pareceu um pouco ilegal e não segui adiante nas perguntas, mas eles continuaram falando. Eles modificavam motores de carro para aumentar a potência e o carro em que estávamos não passava de uma carcaça uma semana antes. Eles nos contaram que o levaram para a Alemanha para testar a melhoria e estavam a 250 km/h quando uma Ferrari encostou e deu sinal de luz pedindo passagem. Pé embaixo, 270 e os sinais de luz continuaram. Por fim eles desistiram e a Ferrari passou voando baixo ao lado.

Perguntamos se não estavamos atrapalhando, mudando o caminho deles. Eles explicaram que não, que tinham apenas saído para comprar cigarros. Às duas da tarde. Perguntamos o que tinha acontecido nessas quase oito horas até o momento em que nos cruzamos. "Minha namorada chamou pra gente ir pro cinema, depois uns amigos nos chamaram pra tomar pastis, depois fomos dar uma volta e resolvemos comprar os cigarros agora". Eles disseram que estavam gostando de levar dois malucos no carro e que a nossa história os divertia muito. Já próximo de chegarmos eles no deram email e telefone e pediram que quando fôssemos para Paris os contactássemos.


Já tenho bastante história para contar para os meus netos, não acha? Mas eles vão demorar muito para nascer ainda. E ainda falta a parte final para contar para você. Você não vai querer perder o desfecho da história, vai? Olha só:

  • Os resultados
  • Anedotas de outras equipes
- Métodos inusitados
- Viagens com romenos
- Fracassos colossais


Você já chegou até aqui, para chegar no fim só falta um fôlego!

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