A odisséia de Cadis

Eu sou um cadis (Nota do Tradutor: carrinho de compras). Eu fui fabricado junto com muitos outros como eu. Minha função é ajudar, evitar que as pessoas carreguem muito peso. Minhas rodas foram feitas para o chão frio e lisinho de shoppings centers e supermercados. Meus colegas estão espalhados em muitos lugares da Europa e quiçá do mundo. Eu recebi uma bandeirola do IKEA (N.T.: Loja de móveis e artigos domésticos muito conhecida na França) assim que cheguei em Nantes.

Sempre tive uma vida muito tranquila. Diria monótona, até. Mercado - esteira rolante - garagem - esteira rolante - mercado. Verdade que vez por outra tem alguém que me sobrecarrega, mas nada que os meus fabricantes não tenham previsto.

Mas tudo mudou há três semanas. Três rapazes me tomaram emprestado, nada de errado nisso. Eles traziam muitas e muitas caixas e não pareciam ser daqui. Falavam uma língua estrangeira e que às vezes parecia não ser uma língua só: um chiava muito, o outro falava "tchê" e tinha um dos olhos puxados que falava "meu" o tempo inteiro. Percebi que alguma coisa de estranho estava acontecendo: nenhuma das caixas deles era de mercadoria da Ikea nem das lojas do lugar onde eu moro. De onde veio aquilo? (Nota do Editor: do Office Depot, uma loja de artigos de escritório distante 2 km do Ikea) Eles puseram mais de 100 kg de carga em mim, mas não havia problemas era só aguentar até a garagem que tudo aquilo ia ser levado no bagageiro de um carro.

E a caminhada continuava e eu não parava. Vi muitos e muitos carros parados, mas em nenhum deles eu parei. E foi então que eu vi a luz. Na verdade, as luzes. Amarelas, altas. E então eu vi a rua, algo que eu vira poucas vezes. Fiquei na calçada e eu então eu vi aquele monstro branco e comprido chegar (N.E.: o bonde). E qual não foi minha surpresa quando aqueles três me colocaram dentro. E eu vi tantas coisas, vi um rio, vi navios, lojas, bares, um mundo completamente do shopping em que eu vivo.

E cheguei num lugar que eu não conhecia, a École Centrale Nantes (N.E.: a 15 km do Ikea). Os três sequestradores me descarregaram e me largaram embaixo de uma escada. Pouco depois eles voltaram com um microondas velho, grande e pesado e largaram em cima de mim. E lá eu fiquei, por duas semanas.

Foi então que o mesmo chiador e o mesmo baixinho dos olhos puxados voltaram, acompanhados de um cabeludo e de um outro que falava cantando (N.T.: eu). E lá fomos nós de novo. Antes de chegarmos à rua eles decidiram me fazer de brinquedo. Subiam em cima de mim, deslizavam pelos corredores e pelo hall e filmavam tudo. Finalmente eles cansaram e fomos encontrar o monstro comprido de novo. Entramos sob os olhares de todos os presentes. Eu e aquele micro-ondas gordo em cima de mim, que eles colocaram ali somente para fingir que levavam alguma coisa. A intenção deles era me devolver e depois jogar o micro-ondas no lixo. Foi então que o "cabeludo" e "cantor" acharam que seria uma boa idéia ficar com o micro-ondas para tirar as peças úteis de dentro.

Saímos do monstro comprido, num lugar cheio de lojas e de gente. Todos nos olhavam, alguns riam. Eu fiquei com vergonha. O que afinal havia de errado em mim para que todas as pessoas me olhassem daquele jeito? Talvez se eu não estivesse levando aquele micro-ondas velho e gordo em cima de mim as pessoas não me julgassem tanto. Fomos encontrar outro monstro comprido, mas os quatro sequestradores acharam melhor encontrá-lo um pouco mais longe para evitar confusões com uns homens de verde que estavam lá (N.E.: Os fiscais da empresa de transporte). O começo foi ok. As calçadas me lembravam muito o chão que eu estava acostumado.

Foi então que nós encontramos calçadas não tão lisinhas. Minhas rodas rangiam e o meu corpo de aço fazia um barulho infernal a cada solavanco que eu dava. Tentamos entrar no primeiro monstro comprido que passou, mas havia muita gente. Fomos expulsos do segundo. Entramos escondidos no terceiro. As pessoas continuavam nos olhando. Então eu vi minha casa se aproximar, o Ikea. Finalmente aquele inferno ia terminar. Que vergonha chegar em casa maltratado daquele jeito e levando um forno gordo, preguiçoso e sem classe.

Mas minha alegria durou pouco. O "chiador" e o "olhos puxados" ficaram lá em casa enquanto o "cabeludo" e o "cantor" me levavam mais uma vez para fora. E quando eu achava que já tinha passado por tudo, me vejo deslizando aos trancos e barrancos em calçadas ásperas, cheias de folhas caídas e sob a chuva. Deslizei muito, muito... Não aguentava mais. Chegamos até uma rua bem grande, muito mais larga do que as outras que eu havia visto e onde os carros passavam muito rápido. A calçada era terrível, esburacada, áspera. Minhas pobres rodas doíam a cada vez que aqueles dois malucos forçavam passagem sobre um buraco elameado. E o pior é que aquele gordo branco ainda pulava em cima de mim a cada tranco.

Deslizei muito (N.E.: Os dois quilômetros entre o Ikea e o Office Depot). Eles me largaram do lado de fora de uma grande loja por alguns minutos, tempo suficiente para descansar um pouco e ver o meu estado geral: folhas, pedras e pedaços de sacos plásticos agarrados nas minhas rodas. Meu descanso durou pouco, pois eles logo voltaram com duas caixas enormes (N.E.: Duas cadeiras de escritório de 20 kg que estavam em uma promoção muito boa e aquele era o último dia para comprá-las com esse preço). Iniciamos o caminho de volta.

Não podia ficar pior, não podia. E minha casa estava tão perto. Mas ficou. Com o balanço, uma das minhas peças se soltou (N.E.: o compartimento onde se coloca as moedas para pegar o carro emprestado) e os sequestradores começaram a me encher de lixo (N.E.: uma calota de um Renault e símbolo da Peugeot caído de um carro encontrados pelo chão).

Mas apesar de tudo, cheguei... O "cabeludo" ficou no ponto de encontro com o monstro comprido junto com as caixas, o gordo branco e o lixo e o "ccantor" me deixou em casa. Eu estava num estado horroroso, sujo, rangendo e cheio de folgas. Não sei o que aconteceu com eles, devem ter entrado naquele monstro comprido de novo. E se tiverem ido para o inferno eu não me importo.

Epílogo

Voltamos com as tralhas (cadeiras, micro-ondas e as peças dos carros) dentro do bonde ainda atraindo olhares, mas menos do que quando estávamos com nosso companheiro de aventura que narrou a maior parte da história. Ao todo, nós passeamos com um micro-ondas de 25 kg por 34 km, dos quais 4 km com o nosso valoroso carrinho de compras do Ikea sobre a lama, as pedras e as folhas.

Documentamos bem a aventura em vídeo e em breve colocarei uma compilação aqui. Ignoro o destino do nosso camarada, mas acredito que os funcionários do Ikea devem ter achado muito esquisito aquele carro cheio de lama e todo frouxo...

P.S.: Essa aventura me motivou a criar um novo marcador para o meu blog: "sem noção". Aproveitem.

3 Responses to “A odisséia de Cadis”

Anônimo disse...

Caramba tchê, tu escreve muito bem! Muito boa historia! Vou colocar teu blog nos links la do meu também.

Mas ali no final... não seria "epilogo" ao invés de "prologo"? =D

Opa! É verdade. Já corrigi. Abraço e valeu pelo comentário!

Clara Bez. disse...

Esse texto ficou muito bom! Morri de rir ao ler. Tu fez da estória algo tão real que senti mesmo um dó do pobre carrinho. =D

Postar um comentário