Pouce d'Or Parte 2

4) Um enorme coincidência
Última estação de serviço antes Metz. Frio. Chuva. Primeiros sinais de cansaço. Alguns fracassos retumbantes em conseguir carona. Quarenta minutos depois de chegarmos, a surpresa: de um carro recém-chegado descem dois centraliens que também faziam o Pouce d'Or. Eram o Tobias e a Anaëlle, ambos do primeiro ano. Um detalhe muito importante: o Tobias é alemão, estudava em Munique antes de vir para França e era para lá que ele ia na competição.


Fizemos um acordo de que a prioridade das caronas era minha e do Loïc, pois havíamos chegado primeiro. E vieram mais 80 minutos de fracassos retumbantes até que abordamos um cara num grande furgão da Ford com placa alemã. Ele era alemão e falava quase nada de francês, então desistimos e deixamos a vez para o Tobias negociar. E ele conseguiu a carona diretamente para Munique, passando por Strasbourg. O único problema é que só havia lugar para três.

Conversa vai, conversa vem, o alemão decidiu levar os quatro: o Tobias na frente, eu e a Anaëlle sentados atrás e o Loïc jogado no meio das bagagens do homem. Seguimos viagem com ele e não tenho muita coisa para falar a seu respeito, pois eu não entendia nada do que ele falava. E, a propósito, ele falava muito, fosse com o Tobias ou ao celular. A viagem foi cheia de momentos assustadores, pois ele tinha o hábito de gesticular enquanto falava com o Tobias e para isso ele usava as duas mãos. O cúmulo foi quando ele ligou o notebook, colocou-o sobre o painel do carro e acessou a internet. Em todos esses casos a velocidade média era de 115 km/h. Taí a figura:

Enquanto estávamos no carro recebemos uma mensagem da organização dizendo que uma das duplas participantes tinha pego carona com um açougueiro e que após contar a história da competição, o cara decidiu doar como prêmio ao vencedor um presunto de 7 kg.

5) Ponto de retorno: Munique
Chegamos a Munique por volta de 00:45. E então descobri que se Metz estava fria, Munique estava um gelo. A nossa primeira constatação foi que quase todos os bares e boates estavam fechados. Encontramos com os amigos do Tobias num ponto central da cidade e rumamos para a estação de metrô enquanto batíamos algumas fotos. A comunicação foi muito tranquila, pois um deles falava francês muito bem e o outro falava inglês.

Chegamos finalmente na casa deles por volta de 02:00. Além dos dois amigos do Tobias, no seu antigo apartamento agora mora também uma estudante polonesa do programa Erasmus Mundus. Ela não ficou nem um pouco feliz por ter sido surpreendida no meio da noite com a chegada de tanta gente. Sobretudo porque ela usava seus trajes de dormir com os dizeres "I love boys" na frente. Largamos nossas bagagens e fizemos uma pequena pausa para comer, escovar os dentes e tomar uma bela cerveja branca da Bavaria!


6) Quem não se comunica se trumpica.
Havíamos decidido parar em Munique e retornar pela manhã. Embora fosse cedo e pudéssemos avançar ainda mais, achamos prudente reservar mais tempo para a volta do que para a ida, uma vez que não existe lugar para a flexibilidade na volta. É preciso voltar para Nantes e aceitar carona para outro lugar que não esteja na rota não é nada bom. Acordamos às 6:00 moídos de cansaço. Como eu já havia constatado diversas vezes antes, eu fico mais burro quando estou com sono. Eu deixei minhas luvas sobre a cômoda e na hora da saída o Loïc me perguntou se aquelas luvas não eram minhas. Eu respondi categoricamente que não, pois na minha cabeça eu só pensava "eu não tenho luvas, pois o Ceará é quente pra caramba". Minha sanidade só voltou quando estávamos longe, na estação do metrô e quando minhas mão já começavam a apresentar alguns sinais de queimadura por frio.

Pela manhã recebemos uma mensagem da organização, contando que havia uma equipe que chegara à Polônia, a 1678 km de Nantes. Inacreditável. Se eles voltassem a tempo teriam a vitória e o recorde da competição, com mais de 200 km de vantagem em relação ao recorde anterior.

Atravessamos mais uma vez a cidade de metrô e nos posicionamos num semáforo perto de uma das saídas da cidade por volta das 07:15. Na mão, dois cartazes: Ulm, uma cidade próxima, e Frankreich, França em alemão. Fizemos um acordo de cada dupla deveria conseguir sua própria carona, uma vez que a carona a quatro é muito mais difícil. Mantivemos distância para que cada dupla tivesse espaço. Em torno de 08:00 um carro parou quando acenamos. Era um cara entrocado, de aspecto um pouco rude e com um palito de dente na boca. Havia um obstáculo imenso: ele só falava alemão. Através de gestos e uma boa dose de boa vontade eu perguntei se não era possível levar a outra dupla e ele disse que só podia levar dois. Isso me fez desconfiar ainda mais, pensei mil besteiras, pensei como era mais fácil roubar ou matar dois do que quatro. Mais tarde refleti e pensei no lado dele: "é mais fácil ser roubado ou morto por quatro do que por dois".

O problema é que essa reflexão foi bem tardia, já no fim da viagem, e enquanto fizemos o trajeto a cada vez que ele procurava algo na bolsa ou debaixo do banco eu tinha a impressão de que no momento seguinte eu teria uma pistola apontada para a minha cara. Ele havia nos mandado tirar os coletes fluorescentes e quando eu perguntei a razão ele respondeu que tinha algo a ver com a polícia. Saquei um grande pedaço de papelão e desenhei o símbolo de paz e amor para mostrar que éramos pacíficos. Eu só não sabia que aqui na Europa esse símbolo é quase sinônimo de maconheiro. Ele nos perguntou se trazíamos drogas e passamos por alguns momentos tensos até que tudo se apaziguasse.

O expediente do papelão mostrou-se uma forma eficiente de comunicação. "Conversamos" com ele desse modo durante todo o trajeto. Tentávamos explicar que queríamos descer na última estação de serviço antes de Ulm, que não queríamos entrar na cidade. Mas ele não entendia nem "estação de serviço" nem "última". Usei toda minha veia artística para me fazer entender. Os desenhos eram bastante toscos, mas eram o suficiente para mostrar o que queríamos, o que estávamos fazendo e até para conversar amenidades. Complicado foi explicar o que diabo estávamos fazendo na Alemanha e por que tínhamos pressa para chegar. O fluxo de palavras, desenhos e idéias que eu usei para explicar foi o seguinte: "Schummacher, Rosberg, Heidfeld", "Fórmula 1", "corrida", "carona" e "corrida de caronas".


Chegamos no último posto antes de Ulm, tiramos a tradicional foto e entramos na loja de conveniência. Descobri por fim que nosso motorista era um cara legal: ele pagou um café pra gente e continou conversando. Enquanto estávamos na mesa um carro chega e duas pessoas com imensas mochilas descem. Tobias e Anaëlle. De novo. Inacreditável como nos encontrávamos ao acaso pela segunda vez. O Tobias conversou com nosso motorista e esclareceu qualquer mal-entendido que possa ter acontecido.


7) Um pequeno momento de disgressão
Se você não parou de ler até agora, você deve estar cansado. Levante, ande um pouco. Suas pernas vão agradecer e você pode até mesmo evitar uma trombose. Se o seu problema é tédio, por que não jogar sudoku ou palavras cruzadas?

Agora que você está disposto de novo, voltemos à aventura!


8) Um motorista interessante
Percebemos de imediato que as estações de serviço na Alemanha são dispostas de maneira diferente. Na entrada fica o posto de combustível e a loja de conveniência. Na saída fica o restaurante/lanchonete. Essa configuração torna o lugar bastante longo, diferente das estações de serviço francesas, que aglutinam tudo numa coisa só. Renovamos o acordo de independência das duplas. Deixamos os nosso camaradas no posto de gasolina e rumamos para o bistrô. O lugar era muito simpático, ficava na beira de um lago e passava uma impressão bucólica. Nas margens do lago, próximo de algumas mesas e bancos rústicos, um senhor fumava e tomava vagarosamente seu café. Decidimos abordá-lo, mas apenas depois que ele terminasse seu momento de relaxamento.

Esperamos uma dezena de minutos e vez por outra o observávamos para saber se ele já tinha acabado. Quando ele finalmente sorveu o último gole, jogou a bituca fora e abriu a porta do carro eu o abordei em inglês:

- Bom dia, senhor. Com licença...
- Vocês podem vir comigo.

E ele falou essa última frase já afastando as coisas no banco de trás para liberar espaço para nós. Aproveitei-me da boa vontade do homem e perguntei se ele podia levar uma outra dupla. Ele consentiu desde que não nos importássemos com o aperto. Chamamos os nossos colegas e entramos no carro.

Algumas informações: ele era grego, mas morava havia vinte anos na Alemanha, onde trabalhava como fisioterapeuta e osteopata. Tinha um semblante tranquilo e um certo ar de quem já fora hippie na juventude. Acredito que ele se identificou conosco, pois ele contou algumas de suas anedotas de quando viajou através de caronas. A mais interessante foi uma ocasião em que ele ficou preso um dia e meio numa estação de serviço sem conseguir caronas, quando finalmente a polícia foi lá e, pasme, lhe ofereceu a carona.


O carro dele era cheio de cacarecos: estatuetas, amuletos, bandeiras e até uma vaquinha de pelúcia pendurada no teto. Simpatizei logo com o cara. Em um determinado momento eu vi uma placa na estrada com os dizeres "Legoland #### ### ###". O resto era alemão e eu não entendi. Perguntei para o Tobias se havia uma Legolândia na Alemanha e quem respondeu foi o nosso motorista, adicionando à sua resposta uma detalhada explicação do que era a Legolândia. Eu retruquei:

- Ah, eu sei o que é a Legolandia. Desde pequeno eu quero visitar. Se hoje eu estudo engenharia é porque eu brinquei muito com Lego na minha infância.
- Pois eu trabalhei numa fábrica da Lego quando tinha dezenove anos. Fabricava as pecinhas. Era um trabalho de verão. Em que ano você nasceu?
- Em 1987.
- Pode ser que algumas das suas peças de lego tenham sido fabricados por mim.

Chegamos finalmente na última estação de serviço antes da cidade onde ele ficaria, e de cujo nome agora não me lembro. Tiramos a foto ao lado do seu carro azul e de forma que o adesivo "Smile" aparecesse. No meu colete ele escreveu em grego:

Boa Sorte

Stathis


Gostou do que leu? Conseguiu ler as duas primeiras partes de uma vez só? Que tal ler a terceira também? Nela você verá:
  • Um gostinho de derrota
  • Acima de tudo e mais uma vez a comunicação
  • Algumas impressões sobre as auto-estradas alemãs
  • Um novo gosto de derrota e um grupo inusitado
  • "Nunca cante vitória antes do tempo"
  • Desmanche de carros e 150 km/h na periferia de Paris
Mas não vá cansar sua vista. Levante, beba água. Ficar sentado tanto tempo não faz bem para a sua saúde. Mas não deixe de ver a outra metade da aventura!


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