Ski 2011

Todos os anos a École organiza uma semana de ski no início da primavera. Ano passado eu cheguei a pagar o passeio, escolhi o ski entre as duas opções possíveis (a outra era o snowboard) e a poucos meses do evento eu cancelei para poder voltar pro Brasil pela primeira vez e recolocar meu eixo emocional no lugar. Não me arrependo de ter feito isso, pois eu realmente precisava, mas os comentários dos meus amigos sobre a semana me deixaram com uma pontinha de inveja. Quase todos tinham feito snowboard ("ski é coisa de viado", diziam eles) e eu me decidi a não perder a edição 2011.


Ski 2011

Pois bem, cá estamos nós em 2011. Paguei um bom meio milhar de euros pela semana de ski. Tudo pago: alojamento, aluguel do material, hospedagem e alimentação. Diferença fundamental: desta vez eu escolhi snowboard. Algo me dizia que eu ia me ferrar mais do que se tivesse escolhido ski, mas por que não tentar?

O local escolhido foi a estação de Val Thorens, próxima de Chambéry nos Alpes franceses, a estação de ski mais alta da Europa, situada a 2300 metros de altitude. Val Thorens se situa no Vale de Belleville, que comporta mais duas estações. Dois vales adjacentes com suas respectivias estações compartilham suas pistas com as estações do Vale de Belleville, o que faz do complexo o maior domínio esquiável da Europa.

Em Nantes as temperaturas já passavam dos 20ºC na época da saída e o frio e a neve já pareciam coisas de outro mundo. Difícil imaginar que poderia haver neve para esquiarmos e isso era uma preocupação real. Depois de quinze horas dentro do ônibus, com direito a todas as idiotices que as pessoas fazem para manter todos acordados, chegamos em Val Thorens. As estações mais baixas já não apresentavam nenhum traço de neve, mas Val Thorens ainda parecia uma casa de bonecas no meio de um véu branco. Bendita idéia de escolherem a estação mais alta da Europa ou do contrário não teríamos neve.

Preenchemos três ônibus, um total de 150 centraliens. Desse tanto, éramos onze brasileiros: seis EI2 e cinco EI1. Fiquei num quarto de cinco pessoas, com mais dois colegas brasileiros e dois franceses do primeiro ano que não conhecíamos até então. Chegamos lá no sábado dia 23/04 e nos instalamos. Em seguida recebemos as pranchas e as botas, que poderíamos usar a partir do dia seguinte.

O hotel não era ruim, mas algo não me cheirava muito bem. A quantidade de cartazes agressivos era assombrosa:

"É proibido andar com sapatos de ski nas dependências do hotel. Caso você faça isso será penalizado com uma multa de 20 euros"

"Qualquer atraso no check-out resultará em uma multa de 25 euros"

"O barulho depois de 22h00 é proibido. A primeira ocorrência será penalizada com uma multa de 50 euros. A segunda resultará em expulsão"

"Se você desejar fazer o check-ou entre 12h00 e 13h00 deverá pagar uma taxa adicional de 20 euros"

Confessemos que não são mensagens lá muito calorosas. A impressão que eu tive é que o pessoal do hotel só queria ganhar dinheiro à toda custa. Isso também provocou uma impressão de antipatia intensa e a sensação de que algo não sairia bem. Eu não me enganei, mas deixo isso mais pro fim da história.

Quem tem cóccix tem medo

Dos brasileiros que estavam por lá alguns já tinham experiência do ski do ano passado. O Thiago, o Roger e a Patrícia, todos do segundo anos, haviam feito snowboard. O Leo, do primeiro ano, já tinha feito snowboard no Canadá por dez dias e mais três dias de ski no começo deste ano. Os demais eram marinheiros de primeira viagem. Eu, o Fernando, o Fábio e a Ju no snowboard e a Fabrízia, o Diego e o Igor no ski.



Fomos para uma área de treinamento, basicamente a desembocadura das pistas mais próximas à estação.Era uma descida suave, reta e larga. Dezenas de pessoas passavam ali a cada segundo, inclusive criancinhas. Pensei que talvez não fosse tãããããão difícil assim fazer snowboard e que o equilíbrio que eu adquiri fazendo slackline me ajudaria e então me arrisquei a descer sozinho sem nenhuma assistência prévia dos meus amigos mais experientes. Não é que funcionou?

Mentira, foi um desastre. Eu não possuía domínio nem sobre a minha velocidade nem sobre a minha direção, ou seja, uma deriva total, um perigo ambulante. Para evitar uma trombada com alguém eu me atirava no chão e deixava o atrito se encarregar da frenagem. Fiz duas passagens como essa até baixar a cabeça e aceitar que eu tinha que pedir ajuda a alguém.

O Roger então me explicou o princípio. Antes de andar eu tinha que aprender a freiar, ou melhor, a descer a rampa com a prancha perpendicular ao sentido da descida, cravando a lâmina metálica da parte de trás da prancha na neve. Acreditem, isso é muito mais difícil do que parece. Uma distribuição equivocada do peso corporal e você toma para trás. Um deslize qualquer que faça a lâmina na frente da prancha cravar na neve e você capota desastrosamente para a frente.

Próximo passo: a folha. Imaginem a trajetória de uma folha caindo de uma árvore: ela oscila de um lado ao outro, mantendo a mesma superfície voltada para baixo. Pois bem, essa é uma das maneiras de conduzir o snowboard. A pessoa desce um tantinho para a esquerda, com o corpo voltado para a descida e depois desce para o outro lado sem jamais dar as costas para a direção que está descendo. Ora o pé esquerdo está na frente, ora o pé direito e o corpo sempre virado para a frente. Isso é extremamente amador, mas não há alternativa para os iniciantes.

A maneira "correta" de descer é o S. Como o próprio nome sugere, ela consiste em traçar uma trajetória em forma de S. Assim como na folha descemos um pouco um lado por vez, mas a diferença é que a pessoa mantém o seu pé forte sempre na frente. Isso significa que em alguns momentos freiamos com a parte de trás da prancha com o corpo voltado para a descida e em outras com a parte da frente com as costas voltadas para a descida. O principal problema durante o aprendizado dessa técnica é o momento da transição de um lado para o outro, é muito fácil cravar as costas do snow na neve e atterisar feito uma jaca com as costas e a nuca no chão. Caro leitor, cara leitora, a neve é bonitinha, é branquinha e parece fofinha, mas trombar com ela numa queda não tem nada de fofo.

As pistas de ski são graduadas por cor. As pistas verdes são as mais fáceis, seguidas pelas pistas azuis. Em seguida vêm as pistas vermelhas, que apresentam alguma dificuldade por causa de uma inclinação elevada ou uma quantidade grande de obstáculos (desníveis, buracos, etc...). Por fim, no topo da escala de dificuldade vêm as pistas pretas.

Basicamente eu começava o dia numa pista verde chamada Espace Juniors em cuja entrada estava uma placa com os dizeres "pista reservada para crianças menores de 12 anos e seus acompanhantes". É triste, eu sei, mas é o que meu nível permitia naquele momento. É extremamente desconcertante ver uma criança de chupeta na boca (estou falando sério!) descendo uma pista azul de ski enquanto você está no chão cheio de neve na cara depois de uma queda...

Depois de aquecer nas pistas verdes eu era capaz de descer as azuis. Lentamente e em folha, claro. Com alguma dose de coragem e boa vontade eu conseguia fazer o S em alguns trechos mais planos e menos velozes. Consegui até descer uma pista vermelha no quarto dia. No quinto e penúltimo dia, infelizmente, ao tentar fazer o S numa pisa azul eu caí com o cóccix diretamente no chão.

O cóccix, meus amigos, juntamente com as amígdalas e o apêndice faz parte daquela categoria de órgãos que deixaram de ter função e são apenas vestígios do que foram um dia. Eles têm, entretanto, uma particularidade: posto que eles não servem pra nada de útil, eles ainda são partes do nosso corpo e como tal estão sujeitas ao dano e a dor. O cóccix, esse nosso rabo vestigial, não mais do que 10 cm de osso composto por vértebras fundidas num único elemento é um caso exemplar disso. Situado no fim da coluna vertebral, na região sacra (alguém pode me explicar porque raios o alto da bunda é sagrado?!), ele é provavelmente a parte que vai sentir mais fortemente o impacto de um tombo de bunda no chão. E comigo não foi diferente.

A dor, meus amigos, é inimiga da confiança. E a falta de confiança leva a uma técnica imperfeita, limitada pelo medo. Eu caí numa pista extremamente longe da estação e não era capaz sequer de fazer a folha tamanho era o medo de sentar mais uma vez a bunda no chão e sentir uma dor escruciante. Resultado: desci a maldita pista freiando e levei três horas para voltar ao hotel.

Entretanto, no último dia de ski lá estava eu de novo. A despeito da dor na bunda eu recuperei a confiança e já conseguia me virar bem. Foi a primeira vez que eu consegui descer uma pista azul integralmente fazendo o S e foi a oportunidade perfeita para me filmar fazendo isso e passar a ilusão de que eu não era uma negação completa no snowboard. Uma queda de bunda no meio da tarde me fez dar-me por satisfeito e encerrar o dia antes que eu quebrasse o rabo.


Dando adeus aos mercenários do hotel

A noite do último dia foi regada a cerveja numa pequena soirée entre brasileiros. Nós terminávamos todos os dais tão esgotados que nem passava pelas nossas cabeças participar dos eventos organizados pelo staff. A fadiga era tão intensa que nada além das nossas camas passava pelas nossas cabeças. Como não esquiaríamos no dia seguinte finalmente pudemos nos regalar um pouquinho. Entretanto, ainda faltava arrumar os quartos para o check-out.

Nós arrumamos as coisas por cima antes de dormir e deixamos para o dia seguinte apenas a limpeza do chão. Nosso check-out estava marcado para as 9:30. Nosso quarto era um dos únicos que não tinha carpete. O materail de limpeza disponível se limitava a um aspirador de baixa potência, uma vassourinha de mão e um balde com um esfregão. Limpamos o melhor que podíamos, mas visto que não tínhamos um produto adequado para lavarmos o chão nos limitamos a aspirar.

A recepcionista chegou no nosso quarto às 9:25, entrou rapidamente, olhou e foi embora sem dizer uma palavra. Às 9:37 ela voltou para a vistoria e a primeira coisa que disse foi que o chão estava nojento e que teríamos que limpar. Por que não disse isso quando passou lá cinco minutos antes? Retrucamos dizendo que não tínhamos o produto adequado para isso e ela respondeu cinicamente que o produto estava à venda por 6 euros na recepção. Ela disse também que já tínhamos 7 minutos de atraso e que se ainda fôssemos limpar o chão levaria mais 10 minutos no mínimo e que, portanto, ela ia nos multar em 25 euros pelo atraso. A discussão começou...

Igor: Isso é abusivo!
Recepcionista(mulher): Vocês conheciam o regulamento e deveriam ter respeitado.
Igor: Vocês fazem isso para ganhar dinheiro!
Recepcionista (homem): É assim que nós somos.


Éramos o último apartamento do andar a ser vistoriado. Os outros já haviam deixado o andar e muitos foram deixando os sacos de lixo no corredor. O recepcionista viu aquilo e reclamou. Minha vez de responder.

Angelo: Esse lixo não é nosso. Você não pode nos culpar por ele.
Recepcionista: Vocês são um grupo, eu não me importo se foram vocês ou os colegas de vocês. Esse lixo tem que sair daí.
Angelo: É absurdo nos mandar retirar esse lixo.
Recepcionista: Você tá vendo mais alguém no andar? Só sobrou vocês. Vocês vão ter que tirar.


Terminamos tendo que limpar o chão, o que fizemos apenas com água e evacuar todos os sacos de lixo do andar, sabendo que nenhum deles era nossa responsabilidade.

Felizmente, ou não, não fomos o único grupo prejudicado. Outros passaram por situações ainda piores. O staff ski então puxou a responsabilidade para si e pagou as multas de todos os grupos penalizados por atraso.

Por curiosidade procuramos o tal hotel no Trip Advisor quando voltamos para Nantes para saber as opiniões a respeito. O conceito era péssimo, desaconselhado por 77% dos treze usuários que haviam comentado.

Acredito que tenha sido esse o único ponto negativo de toda a semana de ski, pois o cóccix se recupera mas o azedume causado pela equipe do hotel fica um bom tempo....


Considerações finais

Eu entreguei o snowboard com um lado sensivelmente mais desgastado que o outro (o lado de trás) por causa do uso intensivo em folha e de algumas passagens não voluntárias sobre pedra ou gelo.

As luvas que eu usei foram diretamente para o lixo no fim da semana. No fim do primeiro dia cada uma delas tinham um furo de aproximadamente 1 cm de diâmetro na camada mais externa no centro da palma, frutos de várias quedas e tentativas desesperadas de freiar com as mãos. Os furos foram crescendo em superfície (mais ou menos um centímetro por dia) e profundidade (no fim da semana os furos atravessaram todas as camadas).

Aparentemente eu voltei mais magro do ski. Pelo menos eu não me senti tão desconfortável com o meu corpo ao me olhar no espelho, não tanto quanto antes da semana na montanha.

O cóccix vai bem, obrigado. No dia da lesão eu não conseguia me sentar. Pegar os teleféricos era um suplício, visto que os assentos eram duros e o balançado provocava um impacto bem desagradável. Pela noite tive que dormir de bruços. No dia seguinte já estava consideravelmente melhor, até que caí de novo. Apesar da queda ter sido suave, foi o suficiente para resgatar a memória da dor e me fazer parar. Maldito seja o cóccix.

O nome do hotel é Odalys Siveralp. Xinguem muito no twitter. Para maiores informações e declarações apaixonadas de ex-hóspedes clique aqui.



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