Enfim, a Bretanha...

Começo de conversa (ou de postagem): o que é a Bretanha? É uma região no noroeste da França que é conhecida pelo mal-tempo, as mulheres feias, os homens beberrões e a tendência separatista. Isso é que você vai ouvir dos franceses e, evidentemente, é uma grande mentira, ou talvez apenas uma meia verdade...

Alguns fatos sobre a Bretanha que explicam um pouco essa fama: o povo bretão tem origem comum com os irlandeses e uma parte dos ingleses, povos do oeste da Grã-Bretanha. A origem é o povo celta, que tem uma cultura riquíssima e cujos símbolos são bem conhecidos até hoje, embora poucos procurem conhecer seus significados. Quando agrega-se um povo como esse a um país cujos outros habitantes partilham de uma cultura completamente diferente o que acontece? Movimentos separatistas e, voilà, a maior razão para a imensa quantidade de piadas sobre os bretões. A Bretanha está para a França como o Rio Grande do Sul está para o Brasil, mas sem a fama de ser terra de homossexuais.

Acontece que desde antes de chegar na França eu queria conhecer a Bretanha. A razão é que eu sou louco por faróis e marinharia e os faróis mais bonitos da França estão lá. Na verdade há muitos faróis por lá, pois a costa é toda recortada em rochedos e penhascos, sem falar das malditas pedras semi-submersas mar adentro. Além disso o povo bretão é tradicionalmente muito ligado ao mar. Bingo! Agora vocês entendem minhas motivações.

Para completar, eu estou na capital não-oficial da Bretanha: a inclusão do departamento Loire-Atlantique na região do Pays de la Loire é contestada por 62% dos habitantes. Não é raro ver por aqui pessoas com adesivos com o triskelion colados nos carros. Boa parte dos meus colegas são bretões e há cinco bretões no meu grupo de trabalho (de 28 pessoas). Já vi alguns cartazes do tipo "Aprenda a falar bretão!" espalhados pela cidade e existem instituições que ensinam a língua por aqui. E vem aí mais um fato interessante: o bretão é o último idioma céltico em uso. Ele tem mais de 3.000 anos de idade e uma quantidade inacreditável de defensores para uma língua "morta" e que não tem mais nenhuma utilidade prática.

E depois dessa introdução descomunal feita para que vocês pudessem entender todo o contexto e todo o significado da minha empreteitada, eu digo: fui à Bretanha! Pela segunda vez, na verdade. A primeira foi pra visitar uma indústria de fundição na semana passada, numa cidade bem próxima daqui e eu de fato nem me senti na Bretanha. Minto, chovia bastante quando eu fui e isso sim tinha cara de Bretanha. Uma colega minha de Rennes, capital administrativa, me chamou juntamente com outros amigos pra passar um fim de semana na casa dela. Éramos nove pessoas, seis franceses e mais eu, o Roger e o Rodrigo de brasileiros. Topei na hora, é claro. Programa 0800 pra região francesa que eu mais queria conhecer e ainda mais sabendo que eu não vou viajar nas férias de Tous Saints porque a grana tá curta...

Fomos! Partida na noite de sexta feira 09/10 em dois carros após um pequeno acidente (o motorista fechou a porta na minha mão, mas nada de grave). Chegamos, comemos, dormimos. Não é muito interessante, mas fazer o quê? Estávamos cansados. No dia seguinte o passeio começou de fato: fomos a Saint Malo, uma cidade turística no litoral da Bretanha. E fazia um tempo maravilhoso.

A cidade é estonteante. É um aglomerado portuário, cujo porto é integrado à cidade. Eu acredito que isso reduza bastante a degradação urbana desse tipo de região e ainda deixa o aspecto do lugar muito simpático. A cidade é toda rodeada por muros (e altos!) e é possível contornar toda a antiga cidadela no alto deles. O centro da cidade é povoada de lojinhas de lembranças. Cartões postais, miniaturas de faróis, barômetros e termômetros náuticos, quadros de nós, facas e espadas, pistolas "antigas", bandeiras da Bretanha e bandeiras piratas, tigelas com quase todos os prenomes utilizados na França, livros e mais livros. Impossível não querer comprar tudo.



Após chegar, comemos e começamos nosso passeio. Uma caminhada sobre os muros para ter uma vista panorâmica do mar. Havia rochedos próximos dar orla e um farol mais ao longe. Num dos rochedos há um espécie de fortaleza erigida Deus sabe como. Interessante observar que o acesso aos rochedos depende da maré, pois existe um caminho que fica encoberto durante a maré alta. Quando chegamos o caminho para o primeiro rochedo estava semi-submerso, mas após alguns minutos ele ficou acessível. O lugar é cheio de placas com alertas e ordens expressas de ficar nos rochedos até que a maré baixe novamente, caso o visitante fique ilhado. No rochedo mais próximo, chamado de Grand Bé, encontra-se a tumba do escritor francês Chateaubriand. Sua obra mais famosa é um livro de memórias e no seu epitáfio (escrito por ele mesmo) consta "Aqui repousa um dos maiores escritores franceses". Tá bom que o cara se garantia, mas humildade definitivamente não era o forte dele. Infelizmente não visitamos o segundo rochedo (Petit Bé), pois a maré não ajudou.



Na volta pela cidade, outra vez sobre os muros, conversávamos e ríamos alto quando fomos interpelados por uma mulher com sotaque:


Senhores, façam silêncio. Eu estou trabalhando, estou aqui com 48 americanos e vocês estão atrapalhando a excurssão.



Quanta felicidade! Quando eu começo a achar francês um bicho pedante, vem uma americana para me lembrar que o depósito de lixo sociológico é do outro lado do Atlântico.

De volta ao centro da cidade. Comprei meus cacarecos. Dois cartões-postais, duas insígnias (um triskelion e um brasão da cidade) para costurar na mochila, um pôster do farol de Ar-men (de uma foto tirada por Jean Guichard) e um livro sobre os faróis do oeste da Europa. O Roger comprou um livro sobre a história da Bretanha e o Rodrigo um livro de iniciação ao bretão.

De volta a Rennes, fizemos uma pequena festinha na casa da nossa anfitriã. Outros amigos dela, residentes na cidade, compareceram. Isso deu origem a alguns atritos e algumas coisas que não me agradaram muito. Eu estava lavando a louça para ajudar um pouco e diminuir a bagunça quando um dos amigos dela começa:


- Por que você está lavando a louça?
- Para ajudar e também para fazer uma cortesia pra Solaine, afinal ela está cedendo a casa para a gente.
- Ah, tá. E vocês costumam lavar muito a louça no Brasil?

(pequena pausa e um olhar enregelante)

- Só quando não está limpa. Eu não faço isso por hobby.



O cara se sujeitou a ouvir uma resposta atravessada no estilo dos Bezerra, não foi culpa minha. Respondi com meu sarcasmo habitual. Apesar de tudo, foi melhor do que a resposta que ficou entalada na garganta do Roger e que ele não soltou por educação ("Com a mesma frequência com que vocês tomam banho"). Um pequeno aparte no texto: durante o fim de semana somente os brasileiros e a anfitriã tomaram banho, os demais centraliens que foram não tomaram.

Festinha vai, festinha vem, o povo dançando e eu na minha, pois eu sou nulo na dança. Converso com um, converso com outro e me vejo num grupo conversando com mais duas meninas. Não lembro qual foi o comentário que eu fiz, acho que alguma coisa sobre o tempo, sobre estar sentindo um pouco de frio e o fato de no Ceará a temperatura ser sempre maior que 25º. Resposta de uma delas: "Que bizarro". Tá certo, guria, o que é teu te espera. Esperava o quê de uma região do lado da linha do Equador? Não sei se é porque eu já estava puto com a resposta do outro cara ou se pelo fato dos amigos da Solaine já terem quebrado três copos e ela expulsar os brasileiros da cozinha ou por eu estar me sentindo deslocado na festa, mas a questão é que a minha paciência estava num nível perigosamente baixo. E a conversa prosseguiu até que a garota falou:


- Ouvi falar que no Brasil vocês trocam de capital a cada cinco anos. É verdade?
- ISSO sim é bizarro.

(Risinho sem graça. Dela)

- Não é algo muito inteligente deslocar todo o aparato burocrático de um país a cada cinco anos, não acha?

(Risinho mais sem graça ainda. Fim da conversa)



Fui dormi ainda com os amigos dela fazendo bagunça lá embaixo. O fato gerou uma pequena discussão no dia seguinte entre alguns dos centraliens que ela convidou sobre o que era a verdadeira amizade. Nós a conhecemos há pouco mais de um mês, mas fomos super voluntariosos na hora de ajudar com a bagunça. Os amigos do peito não fizeram nada. Não entrei na discussão, preferi observar o que os outros falavam.

Voltei para Nantes relativamente cedo, pois ainda tinha que lavar roupa. Saldo da viagem positivo (para minha conta bancária nem tanto, foram 50 euros a menos, mas muito menos do que seria se eu fosse de trem). Voltei feliz de finalmente ter conhecido a Bretanha e com mil idéias na cabeça para o passeio de bicicleta que eu quero fazer na região nas férias de verão do ano que vem. A foto do farol já está pregada na parede adjacente à minha cama e as insígneas estão costuradas na minha mochila, junto com uma insígnia do Eurofighter italiano que eu comprei em Lisboa.

2 Responses to “Enfim, a Bretanha...”

Unknown disse...

Angelim,
Cinquenta Euros a mais ou a menos nas nossas finanças não irão causar dano algum. Não se prive comprar o que quizer dentro deste limite valendo-se do cartão de crédito Visa BB. A gente paga a conta aqui.

Unknown disse...

Angelo, cheguei aqui no seu blog justamente pelos faróis, que eu amo! Procurava imagens deles na Bretanha. Você, pelo jeito, já voltou há tempos pro Brasil, não é? Faço doutorado sanduíche aqui em Paris e quero muito conhecer a Bretanha, principalmente o noroeste, por causa dos ventos.
É isso, gostei de passar por aqui!
Até mais...

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