Família adotiva

Isso aconteceu em algum dia em meados de novembro, mas minha memória falha e eu não posso dizer ao certo. A escola enviou um email a todos os seus alunos estrangeiros retransmitindo o convite da prefeitura para uma soirée de recepção dos estudantes estrangeiros de Nantes. Nenhum detalhe sobre o programa, a não ser uma indicação de que o prefeito de Nantes estaria presente. Por uma feliz coincidência, o evento aconteceria a 200 metros da minha casa, o que me privou da desculpa da preguiça e da distância e resolvi ir.

Na entrada recebíamos um adesivo com a nossa nacionalidade. O ambiente era organizado como em uma feira, com vários stands representando várias instituições. Algumas delas eram de associações de estudantes, outras eram de escolas de idiomas. Acabei encontrando um stand de uma associação chamada AFA, Association des Familles d'Accueil (algo como Associação de Famílias Adotivas). A proposta deles era interessante: o estudante devia preencher uma ficha com a idade e a nacionalidade, vem como tirar uma foto. Em seguida a ficha seria transmitida para as famílias interessadas. Algumas têm interesse em uma naconalidade específica, outros em estudantes de algum curso específico. A adoção é simbólica, não se traduz em alojamento nem nada do tipo, é a oportunidade de fazer amizade e compartilhar experiências.


Os Carfantan

Em torno de um mês depois eu recebi uma ligação, pois a associação tinha achado uma família interessada em me adotar. Pouco tempo depois eu recebi um email deles. Um casal, Christine e Christian. O email era assinado por ela e falava brevemente da composição família: quatro filhos e seis netos, dos quais um em gestação. Eles moram na zona rural de Carquefou, cidade na região metropolitana de Nantes. Eles me chamaram para um almoço na casa deles e eu topei. Primeiro problema: só é possível chegar em Carquefou de ônibus e para chegar na casa deles não há transporte público. Decidimos entãos que eu iria de ônibus até o centro de Carquefou e a Christine me buscaria de carro.

Ela me encontrou em uma parada de ônibus e seguimos para o serviço do Christian, que é dono de uma pequena empresa de aluguel de boxes para mudanças ou reformas. Ele nos encontraria na casa quando começasse a pausa para o almoço. Seguimos para a casa deles, atravessando um bocado de campos e pastos. Algo captou minha atenção logo que eu entrei: a casa era decorada em estilo náutico com várias fotos de faróis e de paisagens bretãs. Destaque para a foto do farol de La Jument feita por Jean Guichard e que desde pequeno me assombra e me impressiona. Não contive a curiosidade e perguntei se eles eram bretões. São sim. Eu não falei nada da minha paixão pela Bretanha na ficha de inscrição, então isso foi um imenso golpe de sorte.

Nesse dia eu conheci o filho caçula deles, o Yann (João em bretão). Ele tem 18 anos está fazendo classes preparatoires, ou prepa, os estudos que antecedem a escola de engenharia. Para completar a família aidna faltam as três irmãs mais velhas: Annabelle, Solène e Gwénaëlle. A Annabelle, de 20 anos, estava então nos Estados Unidos fazendo um intercâmbio, mas normalmente ela estuda em Angers e volta nos fins de semana. As duas mais velhas já são casadas e têm filhos. Detalhe importante: a Solène é casada com um português e fala um pouquinho do idioma. Eu soube pela Christine que eu era o primeiro estrangeiro que eles adotavam e os dois principais motivos para me adotar foram a minha nacionalidade e a minha formação. Eles acreditavam que, caso eu falasse mal o francês, a Solène e o marido dela poderiam me ajudar com o português. Além disso, sendo estudante de uma escola de engenharia, eu poderia dar dicas e explicações pro Yann.

A visita foi muito simpática, mas durou apenas uma tarde. Almocei e fui embora depois de algum tempo. Eles me convidaram para aparecer por lá outra vez e mesmo dormir uma noite se quisesse.

A segunda visita

A primeira visita deve ter acontecido no início de dezembro. No dia 15 eu voltei para o Brasil, para passar o Natal com a minha família verdadeira. Aproveitei a ocasião para comprar um presente para a minha família adotiva.

Fui visitá-los uma ou duas semanas depois de voltar, no começo de janeiro. Desta vez fui preparado para passar uma noite lá. Fizemos o mesmo acordo da visita anterior: fui de ônibus até Carquefou e esperei que eles fossem me buscar. Numa grande coincidência eu encontrei o Yann na parada, onde ele chegou poucos minutos depois de mim. Não tardou para que a Christine e a Annabelle, recém-chegada dos Estados Unidos, aparecessem de carro para nos buscar.

Ligação surpresa: a Solène diz que vem almoçar também e traz com ela duas filhas e uma sobrinha. Uma das filhas dela, de 8 anos de idade, falava português e era muito engraçadinho conversar com ela. Foi um almoço bem bacana, num clima legal, regado a bom vinho e comendo frutos do mar.

Depois do almoço a Annabelle me convidou para ir a Carquefou, onde estava acontecendo um encontro de cartunistas. Fomos de bicicleta através de um caminho feito onde um dia passara uma estrada de ferro. A entrada era gratuita e havia cartunistas do mundo inteiro. O bacana é que era possível pegar uma folha de papel e pedir para um dos cartunistas fazer um desenho para você. Alguns deles topavam fazer caricaturas, outros não, mas todos desenhavam para o público. Pedi uma caricatura para um cartunista australiano e discutindo com o sujeito descobri que havia um cartunista brasileiro no evento.

Num canto do salão achei o cartunista. Ninguém menos do que Paulo Caruso. Me apresentei em português e pedi uma caricatura. Passei um bom tempo falando com ele. Sujeito tranquilo, cheio de histórias para contar, ele sacou um caderno de viagens que ele havia escrito/desenhado quando veio pela primeira vez na França e onde ele tinha registrado as memórias de viagem dele. Ele fez uma caricatura bem legal e pôs uma dedicatória bem interessante: "Para Angelo, perdido em Carquefou, encontrado por um cartunista".


Voltamos para a casa dos Carfantan e jantamos. De noite cada um se recolheu para o seu quarto. No corredor do primeiro andar havia uma estante cheia de livros, sendo uma parte considerável deles relatos de viagem de velejadores célebres franceses. Não resisti e pedi um emprestado. Victoire en Solitaire de Éric Tabarly, oficial da Marinha de Guerra Francesa. O livro contava a vitória dele em uma regata de travessia do Atlântico em solitário. Eu, fã incondicional de Amyr Klynk, não resisti a um livro assim. Comecei a ler pela noite e entrei pela madrugada lendo. Minha família adotiva fez a gentileza de me emprestar o livro para que eu terminasse em casa.


A terceira visita

Há uma semana eu recebi um email da Christine perguntando o que tinha acontecido comigo, pois fazia muito tempo que não dava notícias. Apesar de me sentir super à vontade com eles e de eles terem dito que eu posso aparecer quando quiser, eu nunca tive coragem de mandar um email dizendo "tô chegando aí tal dia". Mas, aparentemente, é o que eles esperam. Colocamos a conversa em dia e marcamos uma nova visita para o próximo fim de semana. Daqui a cinco dias, no fim do mês, será o aniversário da Annabelle e é bem possível que eles façam alguma comemoração no fim de semana em que eu estarei por lá.


Por que uma famille d'accueil?

Para mim as razões de se inscrever num esquema de adoção desses são bem evidentes, mas às vezes pode ser difícil vencer a barreira da timidez e aceitar ser adotado. Entretanto, a adoção não é apenas uma oportunidade de comer bem e de graça, obviamente. É uma chance única de sair do ambiente da escola, conhecer pessoas diferentes daquelas com quem convivemos todos os dias. É a chance de imergir na cultura francesa de um modo diferente. É, igualmente, a chance de fazer uma amizade legítima e que, quem sabe, pode durar muito além do período de intercâmbio. Por que não?

O termo "família" é algo bem forte também. A dezenas de milhares de quilômetros de casa é reconfortante dizer que temos uma família, ainda que nessas circunstâncias. Não é a frequência das visitas que nos faz sentir em família, mas o calor da acolhida. Eu tenho muito a agradecer aos Carfantan, por terem me recebido tão bem e terem demonstrado um carinho tão genuíno.




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