Inverno de 2010: Strasbourg

A viagem continua

É 22/02/10. Acordamos num apartamento vazio, pois a Marine havia acordado cedo para ir ao trabalho. Arrumamos a pouca bagagem que estava ainda em desordem e caminhamos algumas centenas de metros até a estação, onde pegamos o trem.

O tal trem fazia uma linha regional, pinga-pinga, parando em praticamente toda cidade no caminho. Embora sua velocidade de cruzeiro fosse bem menor que a de um TGV (Trem de Grande Velocidade), ele se deslocava num ritmo até bom. O problema foi a quebra desse ritmo a cada estação que chegávamos. O resultado: uma viagem de cinco horas. Eu nunca consigo dormir direito em viagens, sejam de trem, avião ou carro. Nesse caso eu dormi uns dois ou três intervalos de 15 minutos, um sono instável e irrequieto, apertado contra a poltrona do trem. Finda a viagem, eu estava um bagaço, completamente enfadado. A Tonya me questionava por que eu estava cansado, já que eu havia dormido. A fadiga era mais psicológica do que física propriamente.

Saímos da estação e procuramos uma mapa na praça em frente para acharmos a localização do hotel. Quando viramos de costas vimos que a estação era uma grande bolha de vidro. Descobrimos mais tarde que o prédio onde a estação funciona tem um valor arquitetônico importante e foi tombado. Por esta razão, decidiu-se protegê-lo com uma canopla de vidro que acabou por esconder a beleza do prédio. No caminho para o hotel passamos em frente a um vitrine de uma loja de telas e molduras e qual não foi a minha surpresa ao ver um gato entre dois quadros. A Tonya disse que era um ornamento, mas eu insisti que ele era real. Ao nos aproximarmos, ele virou a cabeça e nos fitou com uma expressão do mais puro tédio.

O gato da vitrine

Fizemos o check-in num hotel simples. Ainda assim, ele tinha boas vantagens que um albergue não oferece: um quarto para dois e um banheiro privado. Além disso, havia um pequeno nicho com uma pia e um fogão para servir de cozinha e louça limpa num armário. Isso nos seria de grande utilidade durante o tempo em que lá ficaríamos. Devidamente instalados, seguimos para a Place de La Republique, onde encontraríamos a Anaëlle, uma amiga nossa que mora na cidade. Se o nome não lhe soa estranho, possivelmente é porque você já o viu por estas páginas. A Anaëlle participou do Pouce d’Or, sendo ela e o alemão Tobias a dupla com a qual empatamos. Ela nos fez a gentileza de mostrar um pouco a cidade durante a tarde. Infelizmente, ela não poderia nem nos hospedar nem nos ciceronear no dia seguinte, pois partiria para a Bélgica pela manhã. Começamos o passeio acompanhando-a ao centro da cidade.

Nós e nossa guia

Strasbourg é banhada pelo barrento rio Ill ("ih"-"ele"-"ele", caso a fonte não permite o bom entendimento do nome) , que se reparte em dois braços formando uma ilha. É nessa ilha que se encontra o centro histórico da cidade.Capital da Alsácia, região cuja possessão alternou-se várias vezes entre França e Alemanha até a anexação francesa definitiva após a Segunda Guerra Mundial, Strasbourg é um pequeno rincão de cultura germânica na França. Uma enorme parcela das placas da cidade estão escritas em francês e em alemão e a fronteira com a Alemanha não encontra-se mais distante que uma dezena de quilômetros. Suas principais especialidades culinárias são o choucrute, de origem alemã, e a tarte flambée, de origem francesa. Trata-se, portanto, de uma cidade dual, centro de uma região de transição entre dois países de cultura muito rica. E também de espíritos bem distintos: de um lado o calor latino, ainda que não mais que uma brasa apagada perto do calor brasileiro, da França e do outro a rigidez e severidade do povo alemão. Eis a Alsácia.

Como ponto de partida fomos ao ofício de turismo, que se localiza ao lado da catedral, coração da cidade. Se você me permite, caro leitor, gostaria de me deter um pouco descrevendo tal prédio. Ela é um colosso em arquitetura gótica, cuja única torre possui uma flecha de 142 metros de altura. Além dos ricos ornamentos, o seu exterior chama a atenção por sua tonalidade cor-de-tijolo. Comentei isso brevemente, pois aquele templo oscilando entre o vermelho, o rosa e o marrom destoava um pouco das demais catedrais francesas, que têm uma tonalidade mais próxima do branco e do creme. A Anaëlle me explicou então que isso se deve à composição do solo nas proximidades do rio, de onde foi extraído o material para construí-la. A partir de então passei a observar que ela não era o único prédio a apresentar aquela pigmentação. De fato, sendo esse um material de construção civil abundante na região, muitos outros prédios apresentavam a mesma coloração cor de barro.

A Catedral de Notre-Dame de Strasbourg

No interior da catedral, além de tudo o que se encontra normalmente em catedrais do gênero, duas atrações são bastante dignas de nota. Ambas se encontram no braço sul so transepto, que corresponde em quase todas as catedrais ao lado direito do altar, visto que os cânones desse tipo de construção prevêem uma orientação da nave no sentido Oeste-Leste.

A primeira atração é o pilar dos anjos, uma coluna esguia ornada com esculturas de anjos. A sua localização, no centro de uma abóbada, despertou dúvidas a respeito da acuidade dos cálculos feitos pelo arquiteto. Este afirmou, no entanto, que a coluna não tem nenhuma função estrutural, que a abóbada é capaz de sustentar seu próprio peso e que a razão do pilar estar ali era meramente ornamental. Pouco crente nessa declaração, um dos artistas responsáveis pelo interior da fachada esculpiu um pequeno busto numa parede próxima. O personagem, um homem de semblante algo preocupado, algo curioso, fita o pilar com uma mão no queixo como quem espera o momento de sua queda.

O Pilar dos Anjos

O vigia do Pilar


A segunda atração, localizada a poucos metros do pilar, é o relógio astronômico. Verdadeiro prodígio de relojoaria com mais de uma dúzia de metros de altura projetado e construído por Jean-Baptiste Schwilgué, a tal máquina mostra com precisão a posição em relação ao sol dos planetas conhecidos na época de sua construção, o dia do ano, o dia da semana, a estação do ano, a inclinação do eixo da Terra e os horários do nascer e do pôr do sol. Tal qual um grande relógio cuco, pequenos personagens indicam através de seus gestos a passagem de quartos de hora, meias-horas e horas completas. Diariamente, ao meio dia e meia, o relógio realiza um pequeno espetáculo, que eu explicarei mais tarde. Como prova do intelecto genial do seu criador, na passagem do ano 2000 um personagem nunca antes visto apareceu para marcar a passagem de tal data. Diz-se que a obra é tão genial que os soberanos da região decidiram perfurar os olhos de Schwilgué para que ele jamais criasse algo que pudesse realizar com aquilo, uma lenda que existe para outros relógios do gênero. Ainda assim, a estupidez e a crueldade humanas sempre encontram um jeito de dar provas de sua existência. Diz-se também que como vingança ele quebrou um mecanismo de sua obra de modo a impossibilitar algum modo de funcionamento de seus autômatos. Eu chuto que ele tenha quebrado algo que poria em marcha um automatismo ainda mais espetacular do que todos os outros vistos até então.

O relógio astronômico da catedral

Saímos então da catedral, onde vimos um tipo meio esquisito com jeitão de punk perambulava. Era um homem de grande estatura e aspecto truculento com cabeça raspada, piercing no lábio inferior, roupas pretas e botas de couro com um corte antiquado onde colares de guizos tintilavam a cada passo. Nós o víramos antes de entrar e o víamos agora uma vez caminhando ruidosamente na frente da catedral com os guizos em seus pés. Demos pouca atenção ao sujeito e ficamos conversando um pouco mais afastados. Foi então que um alaúde começou a soar melodicamente e uma voz feminina, uma voz poderosa de soprano, começou a cantar uma canção medieval. Nos viramos. O “punk” tocava o alaúde sentando em uma banqueta na frente da catedral. Isso era possível de ver da distância onde estávamos. No entanto, a origem daquela voz nos intrigava. Observando com mais atenção, reparamos que a boca do homem se mexia. Nos entreolhamos com um certo espanto e concordamos unanimemente que aquilo deveria ser uma gravação. Mas não era. Chegamos perto o suficiente para vermos que aquele cara grande e intimidador era a origem daquela voz inacreditável. A música se desenrolava, linda, e com os guizos nos pés ele marcava a cadência. Finda a primeira canção, ele agradeceu com voz masculina, grave e típica do que se pode esperar de um sujeito como ele e deu um sorriso como quem diz “peguei vocês”. Assistimos a mais duas canções e decidi contribuir com 50 cêntimos. O meu preconceito me pregou uma peça e tanto.


O "punk" em frente à catedral. Atenção pro cara no final do vídeo.


Continuamos nossa visita guiada. A Anaëlle nos conduziu ao bairro Petite France, antigo reduto dos artesãos curtidores de couro. Outrora o bairro mais pobre da cidade, marcado pelo ofício sujo e mal-remunerado dos tratadores de peles de animais, o Petite France é o hoje o bairro mais nobre de Strasbourg, onde localizam-se os restaurantes mais caros. Nessa região o rio passa por um desnível em torno de 1,80 m, o que demandou a construção de duas eclusas para permitir a navegação ao redor de toda a ilha. O curso d’água foi dividido em quatro canais paralelos. O primeiro canal, destinado à navegação, abriga uma das eclusas. Os três demais destinavam-se ao aproveitamento do desnível para mover moinhos. É ao redor desses quatro canais que se desenvolveu o bairro, formando uma pequenina Veneza. O lugar é cheio de casas de arquitetura alemã, aquelas com telhados agudos e estrutura de madeira exposta. O que eu não sabia, e que nossa guia explicou, foi a razão desse método de construção. Cada viga de madeira era numerada, assumindo uma posição bem definida na disposição da casa. Em seguida os vãos formados pela estrutura de madeira eram preenchidos com barro para formar as paredes. Isso permitia uma mudança relativamente fácil da casa, caso fosse necessário. Para tanto bastava destruir as paredes e transportar as vigas para a nova localização. Novas paredes seriam feitas com o barro abundante na região.

Petite France

A noite caía e a Anaëlle teve que nos deixar. Agradecemos e continuamos perambulando pela cidade. Jantamos num restaurante, onde pedimos uma tarte flambée. Ficamos surpresos com a quantidade que constituía uma porção individual e terminamos nossa refeição à força, pois não havia mais espaço para nada em nossos estômagos. Finalmente decidimos voltar para o hotel e continuar a visita no dia seguinte. Começamos então na manhã com um passeio de barco pelo rio. A maior parte dos tripulantes era um grupo de turistas italianos. Havia também uma boa quantidade de turistas alemães. A cada vez que passávamos por um prédio de interesse, uma reprodução automática descrevia-o em nossos fones de ouvido. Passamos pelos prédios vistos no dia anterior, ainda no centro histórico. Em seguida, seguimos à montante do rio, para uma parte mais recente da cidade. Lá, na extremidade do nosso percurso, passamos pela Parlamento Europeu, do qual Strasbourg é sede desde 1949. Um prédio moderno em aço e vidro, localizado na beira do rio.

Atracamos e logo em seguida fomos à catedral para a visita ao relógio. Todos os dias, ao meio-dia, um vídeo sobre a história e os detalhes do funcionamento do relógio é exibido e em seguida os visitantes assistem ao seu automatismo mais célebre. Na parte mais baixa do relógio, dois pequenos anjos rechonchudos testemunham a passagem dos minutos. A cada quinze minutos, um deles soa um sino e o outro vira uma ampulheta. São eles que iniciam o automatismo de meio-dia e meia. Mais ao alto a morte nos fita, uma caveira com uma foice numa mão e um fêmur na outra. Finda a participação dos anjinhos, a morte repercute um sino com um fêmur, enquanto uma criança, um jovem, um adulto e um ancião, representando o nascimento e morte de um novo dia, passam em sua frente. Esse automatismo serve para lembrar a efemeridade da vida e a necessidade de fazermos o bem a cada dia. Em um nível superior ao boneco da morte encontra-se uma imagem de Jesus Cristo. É ao redor dele que se desenrola a etapa seguinte do automatismo. Um a um os apóstolos passam na frente do messias. Em atitude reverente, eles se viram na direção do mestre quando estão em sua frente e ele os abençoa com um movimento de sua mão. Um galo, o autômato que se encontra na parte mais alta do relógio, bate as asas três vezes e canta ao fim da passagem do quarto, do oitavo e do décimo segundo apostólo, numa referência clara aos três cantos do galo que marcaram a negação de Pedro. Ao fim da procissão dos apóstolos, Cristo nos fita do alto e nos benze fazendo o sinal da cruz. Formidável.

Fomos jantar em um bar ali próximo e que produzia sua própria cerveja. Pedimos choucrute, mas ainda não recuperados do fasto jantar da noite seguinte optamos por pedir uma única porção. Não nos enganamos, aquilo nos saciou satisfatoriamente. Esses alsacianos comem que não é brincadeira...

Pela tarde fomos ao museu histórico da cidade. A tarifa era bastante baixa e nos dava direito a um áudio-guia para a visita. O interessante é que o aparelho funcionava automaticamente se orientando com a ajuda de sensores de posição a cada vez que passávamos na frente de uma atração específica. E era sempre uma gravação interessante, dinâmica e explicativa. O museu prezava pela interatividade também. Numa seção que falava sobre o reputação das fundições e dos ferreiros de Strasbourg, quatro elmos estavam à disposição dos visitantes para que eles experimentassem e conhecessem a sensação de usar aquela peça de armadura. Numa outra seção sobre as porcelanas da região, peças reais colocadas em caixas de acrílico com um buraco no centro convidavam os visitantes a tocá-las para sentir as texturas dos diferentes tipos de cerâmicas. Além disso, uma boa parte do museu se concentrava sobre a invenção da imprensa, que ocorreu em Strasbourg na época em que Guttenberg lá viveu.

Eu experimentando a réplica de um elmo antigo

Saímos do museu já com a noite caindo. Pausa rápida para voltar ao hotel, tomar banho e comer. Saímos então para uma seção de fotos noturnas, com abertura prolongada do obturador. A cidade estava muito pacata, assim como na noite anterior, denunciando uma vida noturna pouquíssimo movimentada. Retornamos então aohotel para nos preparar para a viagem do dia seguinte.

Acordamos, fizemos o check-out e seguimos para estação. Quando passamos pela loja de telas, lá estava o gato de novo entre os quadros. A única diferença é que agora ele estava virado para o outro lado, o lado para o qual seguíamos, como que indicando a boa direção. A cidade, tal como o gato, não mexeu muito enquanto estávamos lá. Ainda assim, a cidade, tal como o gato, me agradou bastante.

One response to “Inverno de 2010: Strasbourg”

A leitora disse...

pois saiba que me agradou também.
apesar da vida noturna pouca agitada. ;p

ficou devendo uma foto do parlamento europeu hein...
fiquei curiosa pra ver! não sei porque achei que fosse ter. hehehe

texto tá grande mas tá gostoso de ler. tudo bem interessante mesmo! =)

e a foto com o elmo... bem, sem comentários.
hahahaha

beijo, beijo! ;*

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