Inverno de 2010: Berne

E o gato apontava para a estação. Deixamo-lo lá em sua vitrine, na sua siesta preguiçosa. Retiramos nossos bilhetes na estação e tomamos café por lá mesmo. Eu observei logo que entrei a movimentação de três policiais que passavam no saguão frequentemente. Quando fomos para a plataforma, lá estavam eles também. Entramos no trem e a viagem começou. Liguei o notebook para adiantar alguns trabalhos da escola e então vi os três entrando no vagão. Eles pediram a todos para mostrar seus passaportes. O policial que verificou o meu, a despeito de validade, visa e título de permanência, parecia meio indeciso e o segurou por um tempo consideravalmente alto sem esboçar nenhum sinal de decisão. Uma policial, a única do grupo, chegou, verificou meu passaporte e me liberou.

Depois disso, nenhum incidente. O nosso trem seguiu pelas paragens bucólicas do leste da França, numa direção mais ou menos alinhada com o norte. Durante quase toda a viagem margeamos um rio, cujo nome ignoro completamante.


Os anjos de Berne

Chegamos então em Berne, capital da Suíça, localizada na parte germanófona do país diferentemente de Genebra. A primeira cena que meus olhos captaram da cidade foi quando atravessamos uma ponte sobre o rio Aar, que corta a cidade mais ou menos na direção norte-sul, salvo no centro, que é circunscrito por uma pequena alça que o curso faz em direção ao leste. Da ponte ferroviária que atravessamos era possível ver outra, uns 300 metros adiante, de pedras brancas e com um grande e longelíneo arco que se estendia de um lado ao outro do vale. Acredito que a flecha de ambas as pontes devam estar a mais de 30 m de altura do nível do rio.

Foto publicitária mostrando o centro da cidade


Uma das pontes. Essa é pequena comparada à primeira que eu vi.

E aqui devo fazer um aparte. Acredito que descobri que eu amo as pontes, assim como eu amo os faróis. Talvez não só pelo feito de engenharia que os dois constituem, mas também por suas funções. A ponte liga, une, integra. O farol guia em direção ao porto e a águas tranquilas. Ambos são sinais de bom agouro. E quando, além de tudo isso, são também bonitos, não vejo motivo para não admirá-los.

Ainda que o meu discurso sobre coisas inanimadas feitas de pedra, cimento e aço possa desagradá-lo, querido leitor, permita-me insistir mais um pouquinho no assunto. Quando fui a Florença passei uma noite no albergue porque estava indisposto para sair com meus colegas. Lembro que na sala comunal havia algumas revistas e quadrinhos e resolvi pegar uma delas para treinar um pouco meu italiano (que a essa altura do campeonato me confere apenas uma boa compreensão de leitura). Escolhi uma chamada Damphyr, que contava a história de um caçador de vampiros balcânico, ele mesmo meio vampiro, entremeando um pouco com a história conturbada e violenta dos Balcãs. O tema dessa edição, por acaso, era pontes e as lendas que existem sobre elas.

Começo aqui meu terceiro parágrafo sobre meus gigantes inanimados de pedra para contar uma das lendas. Em determinado momento, o pai moribundo do protagonista conta como conheceu a esposa: em uma de suas incurssões pelos vilarejos do interior ele fez uma aposta com os nativos, afirmando que saltaria da ponte que havia por lá. O que o motivou foi a presença de uma jovem que estava na platéia. Detalhes. Vamos ao que interessa. Ele diz que enquanto mergulhava viu um anjo que segurava a ponte. No imaginário popular, as pontes de um arco só são obras impossíveis e que se mantêm de pé apenas por intercessão divina. Segundo essa lenda, a tal forcinha viria de um anjo, que seria maior e mais poderoso quanto maior fosse a ponte. Não posso dizer que acredito nisso tudo, mas também não posso negar que é uma lenda muito bonita.

Tudo isso para dizer o seguinte: se a tal lenda é verdadeira, Berne repousa sobre os ombros de uns anjos muito parrudos. E põe parrudo nisso. O Aar cava fundo em relação ao nível da cidade e ao redor do centro não são poucas as pontes que o atravessam. A maior parte delas é feita em um arco só, ou um grande arco central apoiado por dois arcos laterais. Uma arquitetura digna de nota.


A chegada

Descemos na estação, fizemos o controle de passaporte e seguimos em direção ao albergue, não muito longe dali. O albergue era de tamanho razoável, com uma sala comunal aconchegante, uma boa cozinha (e limpa) onde havia inclusive alguns gêneros comuns que todos os hóspedes podiam usar, notadamente macarrão e molho de tomate. E o principal: acesso gratuito de wi-fi na sala comunal. Perfeito. Outra coisa interessante: havia uma pequena estante com livros dos mais variados. Qualquer um deles poderia ser comprado com 3,00 francos suíços ou trocados por outro livro. Terminei comprando um (O nome da rosa - em inglês) para lidar melhor com um problema de convivência com a Tonia que se acentuou em Berne. Durante toda a viagem ela sacava continuamente o notebook dela para fazer alguns trabalhos da escola. Esse ato se repetia sobretudo dentro dos trens. Em Berne, no entanto, graças ao acesso à internet e ao mau tempo, que frustrou nossas expectativas de sair ao menos duas vezes, ela começou a fazer isso mais constantemente. Excetuando uns passeios a pé que fizemos no primeiro dia e a visita a museus, nós não saímos muito. Aquilo me irritava um pouco, pois eu estava bastante motivado para passear e ainda que quisesse sair sozinho, o tempo me impedia. Foi então que eu comprei o livro.

Felizmente, eu não tive muito tempo de lê-lo em Berne. Explico-me: numa ocasião, saindo do meu quarto às 22:30, ouvi um diálogo (quase um "gritálogo") em português no quarto da frente. Bati na porta e a conversação cessou. Quando eles abriram, perguntei se eles eram brasileiros e eles responderam que sim e se disseram aliviados, pois achavam que era alguém batendo para pedir silêncio. Eles, um carioca e um paulista na faixa dos trinta anos, não se conheciam antes e coincidentemente ficaram no mesmo quarto. Nas noites de chuva em que minha colega workaholic ficava lá no seu computador, eu batia papo com os dois.


Uma cidade de fontes

Como talvez você tenha notado, eu estou ignorando um pouco a ordem cronológica neste texto. Achei mais importante dar o panorama geral de como foi a estada, visto que isso foi mais relevante do que os passeios em si. Não que a cidade não valha a pena. É só que o aparte dos parágrafos anteriores vai ser bem útil no fim texto.

Como eu disse antes, fizemos alguns passeios a pé pela cidade. O centro histórico de Berne não é enorme e pode ser tranquilamente atravessado numa caminhada. Alguns detalhes pitorescos saltam aos olhos. O primeiro e mais evidente é a quantidade de fontes que há no centro da cidade. São pequenas construções, raramente excedendo quatro metros de diâmetro, e que estão quase sempre localizadas no centro de uma avenida. Para ser sincero, poucas me agradaram. Cada um das fontes estava indicada no mapa que pegamos no ofício de turismo. O outro detalhe, não tão evidente assim, mas que me atraiu foi a quantidade de lojas e dependências subterrâneas que existe no lugar. Basicamente, na frente de cada prédio existe um alçapão, atrás do qual uma escada conduz ao subsolo. Nesses porões instalam-se lojas, bares, depósitos e não raro, enquanto andávamos pelas calçadas cobertas, alguém saía ou entrava por um daqueles buracos.

O nosso mapa indicava outras coisas bastante interessantes. A que mais me agradou foi a localização de pontos propícios para tirar fotos panorâmicas. O custo para chegar em tais lugares normalmente era uma subida íngreme nas colinas que cercam a cidade, mas as fotos tiradas lá valeram a pena.
Vista em um dos pontos indicados no mapa.

Panorâmica tirada em outro dos pontos sugeridos.

Descendo de uma desssas colinas nós passamos pelo Parque dos Ursos, um viveiro onde moram doze ursos. O animal, que está no brasão da cidade, é também a origem do seu nome. Berna foi fundada em 1191 pelo duque Berthold V de Zähringen que, de acordo com a lenda, teria dado o nome a cidade após ter matado um urso (Bär em alemão). Infelizmente, os ursos estavam hibernando e não era possível vê-los. Maldito inverno...


Einstein e Berne

Albert Einstein, embora alemão de nascença, decidiu renunciar a sua nacionalidade por não concordar com as atitudes belicosas de seu país. Em seu lugar, assumiu a nacionalidade suíça, que manteve até o fim da vida. Einstein graduou-se na Escola Politécnica de Zurich, mas seu primeiro emprego foi no escritório de patentes de Berne. Foi nessa cidade em que ele passou o seu Annus Mirabilis (1905, o Ano Maravilhoso), quando ele postulou a Teoria do Efeito Fotoelétrico. Isso lhe valeria o no prêmio Nobel anos mais tarde.

No centro, o apartamento onde ele morava continua preservado. O mais interessante, contudo, talvez seja o Museu Albert Einstein, que funciona no mesmo prédio que o Museu da cidade. Decidimos visitá-lo, mas ficamos frustrados ao descobrir que a compra do ingresso para a exposição sobre Einstein era casada com a visita de uma exposição permanente do museu. A tal exposição, que se tratava de algumas múmias e uns poucos artefatos egípicios e árabes ocupava três salas e tinha um aspecto abandonado. O irritante foi não ter a opção de comrpar o ingresso apenas para a parte que nos interessava.

Museu da cidade de Berne e de Albert Einstein


O Museu Albert Einstein é relativamente grande e tem uma apresentação visual muito boa. A exposição segue a ordem dos eventos de sua vida, ou deveria seguir... Para nós não ficou claro o caminho que deveríamos seguir dentro do museu, visto a falta de indicações, e muitas vezes lemos os paineis fora da ordem cronológica. Oura coisa desagradável: embora existissem painéis explicativos em inglês, todas as plaquetas explicativas dos objetos em exposição eram em alemão e, portanto, incompreensíveis para nós. No entanto, é necessário destacar o mérito dos vídeos que explicavam conceitos da física para leigos e que eram exibidos em várias partes do museu.


A partida

Deveríamos partir de Berne a Luxembourg em covoiturage, que significa por alto uma carona paga. Existe um site que permite que motoristas em viagem e gente querendo pegar carona se encontrem. O negócio é lucrativo para ambos: o motorista ganha uma companhia para uma viagem longa e alguém com quem dividir o preço da gasolina e o viajante ganha o que ele mais quer, uma viagem barata.

Nossa "carona" deveria sair na sexta pela manhã e ir até Luxembourg. Ao menos era isso o que estava indicado no site. No entanto, ao contatarmos a motorista para a confirmação, ela disse que sairia no domingo. O site mostrava apenas a volta da viagem dela, que era a parte que nos interessava, mas com a data da ida. O chato foi que ela só nos disse isso em cima da hora, mesmo depois de tantos contatos anteriores. E descobrimos mais tarde que as informações estavam erradas no site por responsabilidade dela, pois o site normalmente mostra as informaçoes com precisão e aquela confusão talvez se devesse à falta de familiaridade com o sistema.

Chegamos então num impasse. As passagens de Berne a Luxembourg já eram caras quando procuramos comprá-las com antecedência. Nesse momento, então, elas estavam muito mais caras. Começamos a discutir uma solução e algumas cenas desagradáveis do nosso impasse em Genebra se repetiram. Explico-me. A Tonia pedia minha opinião sobre as mais variadas coisas na viagem, tais quais sugestões de visitas ou percursos a serem seguidos. Normalmente após eu dizer o que pensava ela falava algo do gênero "mas eu acho melhor de tal e tal jeito" e a minha opinião se perdia no vácuo. Tentava não me importar com isso, pois sei que tem gente que age assim naturalmente. Entretanto, quando estávamos com um problema ela também me perguntava o que eu achava que deveríamos fazer. A grande diferença é que nessas vezes não era uma opinião que ela queria, e sim uma solução pronta, precisa e rápida. Eu, que gosto muito de refletir antes de tomar qualquer decisão, tendia a mostrar as opções para ela para discutirmos juntos, mostrando os prós e os contras. Porém, ela interpretava esse comportamento como hesitação e ficava irritada.

Pois bem, as coisas tinham acontecido assim em Genebra e estavam se repetindo agora. Depois de alguns conflitos resolvi tirar o corpo fora e deixar ela fazer o que bem entendesse para depois não ter o direito de reclamar de mim. Terminamos então conseguindo uma covoiturage até Mulhouse (pronuncia-se Muluse) na França, de onde pegaríamos o trem para Luxembourg. Marcamos com o motorista para nos encontrarmos na estação. Dada a extensão da estação, uma construção longa situada numa esquina de uma avenida movimentada, eu resolvi enviar uma mensagem para ele assim que chegássemos lá indicando uma referência mais precisa. Atravessando a rua havia uma igreja e eu mandei uma mensagem mais ou menos assim: "estamos na estação e esperamos você na frente da igreja".

Como ele tardava a chegar, a Tonia resolveu ligar para ele para saber onde ele estava. Após um diálogo rápido, ela resolveu desligar mais ou menos assim:
"Ok, então. Nós saímos da estação e estamos te esperando na frente da catedral"

Eu me apressei para fazer ela corrigir aquela frase antes que ela desligasse. Aquilo não era uma catedral, era uma igreja. A catedral situava-se 1,5 km ao leste. E ele jamais entenderia o "saímos da estação" como um "passamos pela porta de saída e estamos te esperando na calçada em frente". A interpretação mais lógica seria "nós abandonamos a estação e agora estamos na catedral, a quinze quadras de onde estávamos" e perderíamos nossa carona. Eu tentei afoitamente interromper ela antes que ela desligasse, mas ela se sentiu incomodada e fez um gesto como quem espanta um mosquito. Ainda assim ela corrigiu o erro antes de desligar. Mas depois veio a bomba:
"Olha aqui. Eu não tenho nenhuma obrigação de entender de arquitetura de templos católicos. Isso daqui para mim é uma catedral e pronto."
Ok, eu admito que não entendo de arquitetura de templos mulçumanos, budistas ou judeus, por exemplo. O problema não era o que nós entendíamos por uma catedral, e sim o que o motorista entendia. E se isso comprometiria o nosso encontro com o cara, então era importante sim! Porém, quando fui tentar lhe explicar isso, ela fez uma coisa que me deixou extremamente irritado. Tal qual uma criança birrenta que quer porque quer ter a última palavra, ela virou a cara, fixou os olhos num ponto distante e começou a repitir loucamente os últimos argumentos que ela tinha usado para me impedir de ser ouvido. Resumindo: ela não queria admitir que estava errada e ponto. A partir desse instante as pequenas irritações que eu havia tido até então avultaram-se e manter o sangue abaixo da temperatura de ebulição passou a ser um desafio. Desafio que, naquele momento, eu consegui vencer. Mas a viagem continuaria e era impossível prever o que iria acontecer...

One response to “Inverno de 2010: Berne”

A leitora disse...

depois desse ar de suspense vai ter que postar logo a continuação... ;)

Postar um comentário