Temporada das despedidas

Nesta semana eu completarei dois anos vivendo aqui. E esta data anuncia também meus dez últimos dias deste lado do Atlântico. É muito complicado não viver com o contador regressivo ligado e uma infinidade de frases no condicional passado como "se eu tivesse..." ou "se houvesse..." se formam e desfilam na minha cabeça.

No último mês estive em várias despedidas de outros estudantes, a maior parte deles colegas de amigos meus e com quem eu jamais cheguei a ter muita proximidade. Confesso que achava a reação, o pranto e a efusividade exagerados e achava que quando chegasse minha vez seria diferente. Foi então que ja mais de uma semana atrás eu passei meus últimos dias com a Ju. O baque foi significantemente maior. Difícil me separar de alguém com quem eu forjei uma amizade tão grande, que floresceu no calor infernal do verão parisiense e que se fortificou com as dores do inverno. Vi-me acompanhando-a ao trem que a levaria ao aeroporto e no último instante eu ajudei-a a pôr as malas no trem, mas fiquei na plataforma. Eu sabia que se eu fosse até o terminal de embarque com ela eu choraria. Fugi covardemente do pranto, queria nos proteger de ver um ao outro chorando e gravar isso como última lembrança nossa em Paris, justo nós que explodíamos em riso tão facilmente.

Mas há três dias atrás não teve mais como fugir. Fui a um bar encontrar a Luana, uma amiga da Ju que ao longo deste verão tornou-se ela também uma amiga incrível. Com um sorrisão aberto e um bom humor a toda prova, ela entrou meteoricamente no grupo de pessoas que fizeram este intercâmbio valer a pena. Ela viajaria no dia seguinte a turismo e chegará em Paris no dia em que chego em Fortaleza. Era, portanto, nossa última oportunidade de nos vermos. A soirée começou e se desnrolou como habitualmente, mas a razão de estarmos ali falou mais alto no fim. Passamos uns trinta minutos nos avraçando e chorando um no ombro do outro. Nos despedíamos e voltávamos a nos abraçar logo em seguida para mais pranto e juras de amizade eterna.

Se existe algo que este intercâmbio me ensinou é que eu não sou feiro de pedra. Acreditem, eu pensava antes que eu era... Pensaca que era um cara resistente, vivido, fleumático. Não, não sou. Se levarmos em conta apenas esta temporada de despedidas eu devo ser mais um boneco do papel do que o soldadinho de chumbo que eu pensava ser. Como sempre, eu tento racionalizar, tentar entender a origem das minhas angústias. Ao longo destes dois anos eu fiz muitos amigos, sobretudo vindos da USP e da Unicamp. Eu cheguei "sozinho", o único cearense e estudante da UFC na minha turma de Duplo Diploma. Acho que minha dor é saver que voltarei igualmente "sozinho" e serei separado por no mínimo 2700 km de Brasil dos meus bons amigos daqui. Eu não terei o consolo de poder atravessar um corredor ou simplesmente trocar de sala de aula para encontrar alguém e reviver numa conversa as memórias compartilhadas do intercâmbio. Meus coelgas da UFC que fizeram parte da minha trajetória aui já se formaram e neste momento correm atrás de começar suas carreiras.

Escrevo estas linhas sobre um banco da estação de trem do aeroporto Charles de Gaulle, onde espero para ver meus pais adotivos uma última vez. Eles partem a turismo para a China em poucas horas e esta é minha última oportunidade de vê-los. Espero poder dizer que eles foram para mim uma família de fato e o quanto isso representou. Estqs linhas são escritas com os olhos ainda inchados das lágrimas de ontem à noite, quando encontrei talvez pela última vez alguns colegas de Nantes que me acompanharam durante esses dois anos: Adrian, Igor, Luisa, Rodrigo, Vladimir. Estavam lá também colegas de outras cidades que também deixarão saudades: o Fredão e o Jóia. Sinto-me encabulado por ter chorado tanto ontem no bar e publicamente, transformando a comemoração do aniversário do Adrian em dramalhão mexicano. Tal qual a despedida da Luana, fui expulso do bar pelo segurança. Afinal, é mais fácil acreditar que eu não passo de um bêbado chorão do que aceitar que eu choro por uma tristeza genuína...

Encontrei muita gnete especial aqui. Digo agora àqueles que me viram chorar, algo tão raro, que se eu me permiti chorar diante deles é porque eles fazem parte desse elenco de pessoas especiais.

O trem dos meus "pais" chega em 10 minutos. Dobro a folha de papel ao maço que acabo de preencher completamente com este texto e guardo na mochila. Preparo-me pra outra despedida. Agradeço intimamente por ser feito de papel, e não de pedra. A pedra é perene, mas difícil de gravar, enquanto que o papel é a matéria mais adequada para a escrita e o registro da memória. No final das contas já não consigo dizer se sou eu que traço as linhas em uma folha ou se sou eu o papel onde a vida traça suas próprias linhas.


Os post-its de La Défense

Antes de começar a ler o texto, eu lhe convido a assistir esses vídeos.

http://www.youtube.com/watch?v=qybUFnY7Y8w
http://www.youtube.com/watch?v=vjqIJW_Qr3c&feature=related

O que eles têm em comum? É fácil descobrir ao primeiro olhar: são reações em cadeia. Esse tipo de fenômeno nos fascina e isso é inegável. Quantas vezes nós não ficamos boquiabertos ao ver a queda de uma única peça de dominó desencadear um espetáculo de proporções gigantescas? Ou mesmo a beleza e a espontaneidade de uma ahola num estádio de futebol. Não esqueçamos também que a fissão nuclear é uma reaçao em cadeia também. Todas elas começam de uma maneira simples: uma peça de domino que cai, um torcedor que se levanta, um neutron que se ejeta de um núcleo.


A França passa por um verão modorrento. O mês de julho foi marcado por temperaturas e chuvas outonais e o céu esteve permanentemente ocultado por um manto cinza. Os dois primeiros dias de agosto forma promissores, quentes e claros, mas o clima logo degringolou e cá estamos mais uma vez amargando um outono prematuro. Apesar de tudo, ainda é o verão e as pessoas saem de férias. As escolas estao fechadas e os escritórios estão com ar de cidade fantasma.

De certa forma esse clima triste combina com La Défense: segundo maior distrito empresarial da Europa, um bloco de concreto em formato de pêra, atravessado por um sem-fim de túneis e vias expressas e onde espigões de vidro e aço sobem vertiginosamente a alturas impossíveis. Poucos lugares no mundo representam com tamanha perfeição as contradições da vida moderna. Um local onde o destino de bilhões e bilhões de euros oriundos da iniciativa pública e privada são decididos... Um local onde todos os dias meio milhão de pessoas se cruzam como em um formigueiro ... A maior parte delas chega confinadas como sardinhas em trens subterrâneos, isoladas do mundo graças aos fones de ouvido ou com a cara enfiada em um livro. Tantas pessoas, tantos encontros possíveis, tantos dáalogos em potencial e no entanto a quantidade de sorrisos e bons-dias trocados em tal ambiente beira o desprezivel. O exemplo típico de um local inóspito, inumano e frio.

E há pouco mais de duas semanas, em uma das inúmeras torres do bairro, alguém fez algo diferente. Provavelmente um funcionario entediado, num escritório meio abandonado, liberado da pressão cotidiana graças às férias do seu patrão. Ele foi até sua janela e usando post-its, os bilhetes adesivos tão comuns no meio corporativo, ele criou um desenho no vidro. Do outro lado da rua, alguém na mesma situação e que provavelmente nunca viu o autor do desenho (ou cruzou com ele anonimamente num metrô) respondeu com outro desenho. Nas outras baias de escrióorio dos dois prédios outras pessoas viram essas manifestações e se lançaram elas mesmas no que agora esta sendo chamada de "A batalha dos Post-its de La Défense". E em tão pouco tempo os desenhos se multiplicaram, se complexificaram e ja ocupam toda a fachada dos dois prédios iniciais. A maior parte deles representa personagens de video-game ou desenhos animados, uma consequência nada surpreendente de um universo predominantemente masculino. Outros são mensagens amistosas para os vizinhos. Um outro expôs sua surpresa diante o absurdo da situação através de um imenso ponto de interrogação.


Não gosto do termo "batalha", pois lembra algo bélico. Existe beleza e poesia nisso. No meio de um ambiente taoáarido e frio, as pessoas começam a se comunicar assim, de uma forma tao singela, com pedaços de papel, averbalmente. Ignoram o rosto dos seus correspondentes, mas sao cúmplices ao compartilharem algo que provavelmente representa as boas lembranças de suas infâncias. Não, definitivamente isso não é uma batalha. É um diálogo. Uma conversa que a cada dia que passa vai ganhando cada vez mais interlocutores. Um burburinho que ja deixou os dois pequenos prédios nos limites do bairro e onde tudo começou para subir uma centena de metros, tal um passarinho, e contaminar as janelas de um arranha-céu de um gigante do setor energético francês. Um murmurio que percorreu os corredores da mesma torre e que atingiu as janelas do outro lado, janelas que estão voltadas diretamentes para a Esplanada de La Défense, o coração do bairro. Quem sabe em duas semanas esse vírus benéfico atravessará a esplanada e contaminará o resto do bairro. E um pedestre que perambula com o passo ligeiro se deterá para olhar esses lampejos de humor decalcados em vidro. E ficará um tempo nessa posição, estático e com um sorriso apontado pro céu, um verdadeiro obstáculo à circulaãao apressada e distraída dos demais. E estes se perguntarao o que pode existir de tao interessante la em cima e seguirao o seu olhar. Um encontro, um comentário, um sorriso, uma pequena descarga elétrica no sistema nervoso desta cidade. Um momento efêmero que desperta o olhar e nos faz ver que ainda existe vida e sentimento que podem brotar na urbe.

Chove em La Defense, os casacos denunciam temperaturas outonais e o céu continua cinza como outrora, mas uma infinidade de fragmentos quentes e radiantes do verão se espalham por todas as partes de Paris nos sorrisos e nos corações daqueles que se deixaram contaminar. E eles entrarão nos trens apertados inconscientemente procurarao nos rostos dos demais passageiros alguém que compartilhe um desses fragmentos estivais.

Chove em Paris.




P.S.:Se você está curioso para ver as fotos, acesse a notícia no Blog de Courbevoie, a cidade onde tudo começou.